Cine Teatro Oeiras. Foto sem crédito.
Rogério Newton*
Meu pai mandou-me ir atrás de uma das minhas irmãs. Dona Teresinha estava na entrada. Não sei se ela entendeu minha explicação, mas quando acabei de falar, seu rosto bondoso disse:
Meu pai mandou-me ir atrás de uma das minhas irmãs. Dona Teresinha estava na entrada. Não sei se ela entendeu minha explicação, mas quando acabei de falar, seu rosto bondoso disse:
– Entre, meu filho!
Estava cheio. Todo mundo vidrado. Eu era um intruso perturbando a concentração. De repente olhei para trás e vi o foco de luz vindo lá de cima vencendo as partículas de poeira e a escuridão. Esqueci meu pai, minha irmã, o que tinha ido fazer ali, esqueci de mim mesmo e do mundo. Só tinha olhos para aquela luz branca que descia num feixe único e se desmanchava na tela, onde pessoas tinham vida. Não me interessei pelo que elas diziam ou faziam. O que importava era a luz.
Que me lembre, foi a primeira vez que entrei no Cine Teatro Oeiras. E não foi uma estréia muito animadora para as pretensões disciplinadoras de meu pai. Devo ter ficado um bom tempo no cinema ou zanzando pela praça, pois, quando voltei para casa, minha irmã já estava no quarto. E quem quase apanha era eu, depois de gaguejar explicações sem sentido.
Anos depois, homem feito, muito longe de Oeiras, vi Cinema Paradiso e foi impossível não fazer associações com o velho cinema da minha infância, que era público, mas quem tomava de conta, por arrendamento, era Seu Wagner, um eletrotécnico vivaz, que não morava longe da minha casa e de quem conheci quase todos os filhos, moços como meus irmãos. Era ele quem soava a sirene e punha em movimento aquela Casa mágica de cadeiras duras e muita gritaria quando a fita quebrava. Foi também ele quem inventou uma rádio, que funcionava na parte superior, no compartimento próximo ao projetor. Um dia encontrei pedaços de fotogramas no chão. Levei-os para casa como quem carrega um tesouro.
Mas a Era Wagner acabou, como tudo acaba neste mundo. Não me perguntem quanto tempo durou, pois o que tenho são fragmentos de memórias, como pedaços de fotogramas. Daquele tempo, só lembro ter visto as exibições atribuladas de Tarzan e Sansão e Dalila, em preto e branco, claro. Depois, o Cine fechou, por razões que desconheço, mas imagino quais tenham sido, deixando órfãs crianças como eu. Veio um período de abandono (quantos anos?!) e, em 1969, a empresa Barbosa & Cia restaurou e modernizou o prédio, que, externamente, é quase o mesmo, com suas paredes brancas e linhas retas e longas perfurando o vazio, no lugar onde havia a Cadeia, página obscura do Piauí Colônia.
Com Barbosa & Cia, o Cine passou a ter administração empresarial e um calendário de exibições regulares. Também não me perguntem quanto tempo durou. Só sei que, no final da década de 1970, quando saí de Oeiras, a empresa ainda mantinha o contrato com a Municipalidade. Lembro do filme que iniciou essa nova fase: O Milagre, dramalhão colorido, em duas sessões cheiíssimas na noite de domingo. Depois vieram muitos outros. Vi western a valer, mas também conheci atores como Marlon Brando e o brasileiríssimo Grande Otelo.
Quando voltei a Oeiras, em 1987, o cinema estava fechado. Os projetores, nos quais ainda se usava carvão, continuavam lá. Nunca mais seriam usados. Não sei que fizeram deles. Poderiam fazer parte do museu civil, se a cidade o possuísse. Foi nesse tempo que participei de um grupo de teatro. Queríamos usar o prédio para ensaios e apresentações, mas ninguém quis abrir para nós. Eu mesmo mandei fazer uma chave e por algumas semanas fomos senhores daquele reino de poeira. Espantamos os morcegos, limpamos o que pudemos, tomamos um projetor de vídeo emprestado e passamos alguns filmes com bilheteria paga, que nos rendeu os trocados para o cenário e figurinos da única peça que conseguimos montar.
O Cine entrou em outro período de abandono até ser “restaurado” em 1992. Dessa vez aumentaram o tamanho do palco, construíram camarins e convidaram um grupo paulista de bandolins, que, junto com as bandolinistas locais, fizeram apresentação memorável. Agora, nas vésperas de completar 70 anos, o Cine passa por mais uma restauração e vai ser novamente “inaugurado”.
Posso estar enganado, mas, na história do Cine Teatro Oeiras, não há nada que se compare ao período sob a batuta irrequieta de Seu Wagner. E digo por quê: amadorismos à parte, naquele período o Cine era uma entidade viva, havia um quê de vitalidade comunitária, jamais recuperada, algo que faz lembrar a ingenuidade propulsora de Cinema Paradiso.
Quem assistiu ao filme de Giuseppe Tornatore, sabe que, no final, há a implosão do prédio, para dar lugar a um estacionamento. No caso do Cine Teatro Oeiras, não houve implosão física, mas há grande risco de ocorrer ou já ter havido no plano simbólico. Nas duas últimas décadas, o Cine foi predominantemente palco de cerimônias oficiais ou oficiosas. Nada ou quase nada que nos tenha remetido à uma vitalidade comunitária. Muito pouco de cinema e principalmente muito pouco de teatro.
Durante os trabalhos da última restauração, que ficará pronta no dia 24 de janeiro, discutiu-se, entre outras coisas, a adequação de se usar certo ladrilho. A questão era se guardaria fidelidade ou coerência com o piso original. Nada contra tal questionamento, aliás, bastante natural nesse tipo de trabalho. Porém, a restauração mais importante diz respeito não ao aspecto material, mas à qualidade da energia ou da filosofia que vai mover a Casa.
O desafio não pode ser outro senão transformar o Cine Teatro Oeiras em um núcleo vibrante, protagonista de conhecimento e criatividade, sem medo do novo e do desconhecido, e não um mero local de cerimônias. Quem sabe possamos ver uma filosofia clara e objetiva, cursos livres de teatro e de cinema e um calendário permanente de atividades. E principalmente possamos espantar do íntimo os morcegos, a poeira, e soar a sirene estridente, que faz o coração bater mais forte e não deixa ninguém de mente e braços paralisados.
Estava cheio. Todo mundo vidrado. Eu era um intruso perturbando a concentração. De repente olhei para trás e vi o foco de luz vindo lá de cima vencendo as partículas de poeira e a escuridão. Esqueci meu pai, minha irmã, o que tinha ido fazer ali, esqueci de mim mesmo e do mundo. Só tinha olhos para aquela luz branca que descia num feixe único e se desmanchava na tela, onde pessoas tinham vida. Não me interessei pelo que elas diziam ou faziam. O que importava era a luz.
Que me lembre, foi a primeira vez que entrei no Cine Teatro Oeiras. E não foi uma estréia muito animadora para as pretensões disciplinadoras de meu pai. Devo ter ficado um bom tempo no cinema ou zanzando pela praça, pois, quando voltei para casa, minha irmã já estava no quarto. E quem quase apanha era eu, depois de gaguejar explicações sem sentido.
Anos depois, homem feito, muito longe de Oeiras, vi Cinema Paradiso e foi impossível não fazer associações com o velho cinema da minha infância, que era público, mas quem tomava de conta, por arrendamento, era Seu Wagner, um eletrotécnico vivaz, que não morava longe da minha casa e de quem conheci quase todos os filhos, moços como meus irmãos. Era ele quem soava a sirene e punha em movimento aquela Casa mágica de cadeiras duras e muita gritaria quando a fita quebrava. Foi também ele quem inventou uma rádio, que funcionava na parte superior, no compartimento próximo ao projetor. Um dia encontrei pedaços de fotogramas no chão. Levei-os para casa como quem carrega um tesouro.
Mas a Era Wagner acabou, como tudo acaba neste mundo. Não me perguntem quanto tempo durou, pois o que tenho são fragmentos de memórias, como pedaços de fotogramas. Daquele tempo, só lembro ter visto as exibições atribuladas de Tarzan e Sansão e Dalila, em preto e branco, claro. Depois, o Cine fechou, por razões que desconheço, mas imagino quais tenham sido, deixando órfãs crianças como eu. Veio um período de abandono (quantos anos?!) e, em 1969, a empresa Barbosa & Cia restaurou e modernizou o prédio, que, externamente, é quase o mesmo, com suas paredes brancas e linhas retas e longas perfurando o vazio, no lugar onde havia a Cadeia, página obscura do Piauí Colônia.
Com Barbosa & Cia, o Cine passou a ter administração empresarial e um calendário de exibições regulares. Também não me perguntem quanto tempo durou. Só sei que, no final da década de 1970, quando saí de Oeiras, a empresa ainda mantinha o contrato com a Municipalidade. Lembro do filme que iniciou essa nova fase: O Milagre, dramalhão colorido, em duas sessões cheiíssimas na noite de domingo. Depois vieram muitos outros. Vi western a valer, mas também conheci atores como Marlon Brando e o brasileiríssimo Grande Otelo.
Quando voltei a Oeiras, em 1987, o cinema estava fechado. Os projetores, nos quais ainda se usava carvão, continuavam lá. Nunca mais seriam usados. Não sei que fizeram deles. Poderiam fazer parte do museu civil, se a cidade o possuísse. Foi nesse tempo que participei de um grupo de teatro. Queríamos usar o prédio para ensaios e apresentações, mas ninguém quis abrir para nós. Eu mesmo mandei fazer uma chave e por algumas semanas fomos senhores daquele reino de poeira. Espantamos os morcegos, limpamos o que pudemos, tomamos um projetor de vídeo emprestado e passamos alguns filmes com bilheteria paga, que nos rendeu os trocados para o cenário e figurinos da única peça que conseguimos montar.
O Cine entrou em outro período de abandono até ser “restaurado” em 1992. Dessa vez aumentaram o tamanho do palco, construíram camarins e convidaram um grupo paulista de bandolins, que, junto com as bandolinistas locais, fizeram apresentação memorável. Agora, nas vésperas de completar 70 anos, o Cine passa por mais uma restauração e vai ser novamente “inaugurado”.
Posso estar enganado, mas, na história do Cine Teatro Oeiras, não há nada que se compare ao período sob a batuta irrequieta de Seu Wagner. E digo por quê: amadorismos à parte, naquele período o Cine era uma entidade viva, havia um quê de vitalidade comunitária, jamais recuperada, algo que faz lembrar a ingenuidade propulsora de Cinema Paradiso.
Quem assistiu ao filme de Giuseppe Tornatore, sabe que, no final, há a implosão do prédio, para dar lugar a um estacionamento. No caso do Cine Teatro Oeiras, não houve implosão física, mas há grande risco de ocorrer ou já ter havido no plano simbólico. Nas duas últimas décadas, o Cine foi predominantemente palco de cerimônias oficiais ou oficiosas. Nada ou quase nada que nos tenha remetido à uma vitalidade comunitária. Muito pouco de cinema e principalmente muito pouco de teatro.
Durante os trabalhos da última restauração, que ficará pronta no dia 24 de janeiro, discutiu-se, entre outras coisas, a adequação de se usar certo ladrilho. A questão era se guardaria fidelidade ou coerência com o piso original. Nada contra tal questionamento, aliás, bastante natural nesse tipo de trabalho. Porém, a restauração mais importante diz respeito não ao aspecto material, mas à qualidade da energia ou da filosofia que vai mover a Casa.
O desafio não pode ser outro senão transformar o Cine Teatro Oeiras em um núcleo vibrante, protagonista de conhecimento e criatividade, sem medo do novo e do desconhecido, e não um mero local de cerimônias. Quem sabe possamos ver uma filosofia clara e objetiva, cursos livres de teatro e de cinema e um calendário permanente de atividades. E principalmente possamos espantar do íntimo os morcegos, a poeira, e soar a sirene estridente, que faz o coração bater mais forte e não deixa ninguém de mente e braços paralisados.
3 comentários:
Enquanto isso, em Teresina fizeram um protesto ParTidário contra a abertura provisória da rua que passa em frente ao Theatro 4 de Setembro, com um silêncio vergonhoso sobre o Cine Rex, ali nas barbas dos "artistas". Nem os governos dos PeTralhas lá e cá e nem o do tucano aqui não est]ao nem aí para a sorte desse portentoso monumento cultural teresinense que qualque hora dessa vira uma loja, um templo da Universal, etc. por que não um cinema público a preços populares? A dinheirama entregue ao Frank Aguiar para jogar no lixo com um filmeco já seria uma boa ajuda? E o joão Cláudio, onde está, que não verbera contra esse absurdo? Que inveja de Oeiras...
CINE REX
Seriados de Tarzan.
Lex Barker voando de árvore em árvore,
cruzava veloz o espaço dos meus olhos de menino.
Que era só deslumbramento.
Ninguém sabe, mas a flecha certeira no peito do leopardo
foram meus olhos que a guiaram.
O alemão, ao contrário do campeão olímpico que inventou o famoso grito,
não era só grunhidos ou surdos monossílabos.
Na calçada, entre uma sessão e outra, trocávamos revistas em quadrinhos.
Havia um investigador de menores que agia sempre em conjunto com outro censor.
Tomavam-nos todas que, segundo ele, eram proibidas para menores.
De quantos anos, isso dependia de seu humor.
Na verdade, soube depois, as revistas apreendidas eram vendidas ou trocadas por cigarros continental na banca do Joel, até então apenas de revistas usadas.
Fosse de faroeste ou espionagem,
para os meninos do meu tope, qualquer livro de bolso era proibido.
Ficávamos na imaginação,
se afinal o herói iria se livrar da cilada que lhe armavam na estrada de Santa Fé.
Na bilheteria eu aumentava minha idade, tudo para conseguir o ingresso.
Tempos de faroeste, de bang-bang italiano, esses sim os bons.
Artista e bandidos eram sujos e castigados pelo sol.
Nada de mocinho de barba feita, terninho engomado e botas lustradas.
Filmes de Maciste, Hércules, Sansão e Golias.
Desolei-me quando, da noite pro dia, surgiram os cartazes de kung-Fu.
Era o fim de uma era.
Foi o fim do Cine Rex, pra mim.
J.L. Rocha do Nascimento
Rapaz, você não é vaqueiro não! Você é jornalista/autor/editor/advogado, tuas ferramentas são outras, volta logo e pronto!
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