Herbert Parentes Fortes.
Foto sem crédito.
Kenard Kruel
O poeta irmão Emerson Araújo topou coordenar o Seminário Herbert Parentes Fortes, que será realizado no período de 15 (quinta-feira) a 17 (sábado) de outubro do corrente ano, no Auditório Herbert Parentes Fortes. Convidados nacionais e internacionais virão tomar água do Parnaíba e do Poti e conversar sobre a vida e a obra desse fenomenal piauiense que, infelizmente, ainda não mereceu um olhar mais atento sobre ele. No sentido de contribuir para que ele - Herbert Parentes Fortes - se torne conhecido entre nós, passarei a publicar aqui e no portal da cultura piauiense - Kenard Kaverna - comentários que foram feitos sobre seus livros à época de suas publicações. O segundo, segue abaixo:
Adonias Filho
Quando o vi a derradeira vez – ele, o nosso Herbert -, suas últimas palavras, ao contrário dos outros, não me fizeram sorrir. Fizeram-me pensar. “Se vivesse quinhentos anos, disse, seria tudo neste mundo”. Viveria alguns dias mais, menos de oito dias talvez, tão pouco que não me foi possível revê-lo morto. Mas, silencioso agora, tranqüilo afinal após meio século de andanças e agitação já não poderá escutar-me e saber que, embora não tenha sido tudo no mundo, sua presença resistirá aos quinhentos anos. Nascido com o destino certo foi o que o homem pode ser mais pobre. Não em estadista, um conquistador, um profeta. Tão somente um sábio e, por isso mesmo, imensamente rico em sua pobreza material.
Preferiu ensinar o que sabia. Mestre sempre, e sempre estudante, não quis outra tarefa senão aprender para transmitir – sua voz ecoando ainda, vibrante, cheia de esperança e compreensão. Professor, e ele o foi no melhor sentido socrático, contentou-se com esse ofício, aos alunos perguntando e respondendo. Em um tempo selvagem, de todas as ambições e todos os egoísmos foi o mais simples e o mais puro. Esse mestre legítimo, porém, jamais traiu a si mesmo na fé que escolhera e na verdade que admitira.
Como Jackson de Figueiredo, um dos seus amigos mortos, não silenciava diante de agressão. Um polemista, se necessário. Um panfletário se preciso. E, se pode afirmar em torno de muda indiferença, não era apenas porque dispunha daquela consciente coragem dos filósofos mas, e sobretudo, porque o atraía o debate nas conseqüências lógicas.
Mantendo-se na posição, reanimada cotidianamente no próprio ato de viver, tornar-se-ia um precursor. Os conhecimentos adquiridos como psicólogo, filósofo e sociólogo, ele os canalizaria para a lingüística, erguendo aí o seu campo de batalha, a luta obstinada que prosseguirá numa série de estudos e livros ainda inéditos. Confessa em tese de concurso para o colégio Pedro II, ter encontrado em sua experiência de professor a origem da reforma didática da língua, indiscutível sendo a distinção entre a língua materna e o tronco português. A flagrante incoerência é a de sacrificar-se uma língua nova aos padrões de um classicismo que não a atinge. Foi mostrando, porém, a distância que separa a língua do Brasil da de Portugal, baseando-se nos princípios da ciência aplicados á nossa fala, que Herbert Parentes Fortes se integrou definitivamente no grande movimento da sua geração – o modernismo.
Os críticos e historiadores da moderna literatura brasileira – com exceção talvez de Tristão de Ataíde e Cassiano Ricardo – sempre esqueceram, na dinamização do movimento modernista, a importância que nele desempenharia o professor do Colégio da Bahia. Contemporâneo da geração como Mário de Andrade e Ronald de Carvalho, como Alcântara Machado e Carlos Drummond de Andrade, e não sendo um ficcionista, poeta ou crítico literário a sua cobertura se fez no sentido de uma justificação científica para a expressão lingüística do movimento artístico. Encontravam-se os escritores brasileiros – e Herbert diria – com “a nosso índole idiomática, a nossa sensibilidade pelicular, os nossos critérios de acerto”. O “genius” de uma língua nova, decorrente de uma autônoma comunidade histórica com valores culturais característicos, impusera finalmente a libertação com o modernismo. Afirmava-se nos motivos folclóricos e nas pesquisas dialetológicas. Literariamente, quebravam-se os dentes dos gramáticos tradicionalistas na força tão nativista do romance pós modernista.
Neste particular – e esta foi a extraordinária contribuição de Herbert Fortes -, o movimento modernista não surgiu apenas como uma revolucionária manifestação estética mas, e principalmente, como a incontida eclosão do “genius” lingüístico. Essa fala natural, que Herbert Fortes demonstrou ser língua brasileira na revelação de condições biológicas, psicológicas e sociais, transladou-se veiculada artisticamente para a língua literária. O escritor brasileiro, sem qualquer interesse em executar um mandamento da escola foneticista que tanto preocupara Dauzart, perdeu conscientemente o “medo de errar em português”. Resolveu sepultar a incoerência, desprezando o classicismo luso para trabalhar com o ouvido no subsolo da língua materna. Conseguiu, por isso, ao tempo em que se encontrava com o povo, suprimir sem pesadelos certas estruturas sintáticas e robustecer o rastro da sua língua no uso mais amplo do brasileirismo.
Os que acusavam os que ainda hoje acusam os escritores brasileiros modernos, precisam compreender que o instrumento de trabalho já não decorre do modelo dos clássicos portugueses do século XVI. Escrevendo, “errando em português” - como dizia Herbert -, o nosso escritor confirma tão somente quanto foi útil e indispensável a participação do professor do Colégio da Bahia.
Relendo-o agora, e como se estivesse a ouvi-lo nessa compensação á ausência que a memória estabelece, posso pressentir o lugar exato que ocupará na moderna inteligência brasileira. Os preconceitos intelectuais já não perturbarão os seus adversários. A agressividade dialética, que foi um dos traços do seu temperamento, intransigente quando configurava a tese em uma estrutura irremovível, já não provocará qualquer hostilidade. Herbert Fortes será julgado agora, de hoje para o futuro, como não o podiam fazer, no fundo da vida, os frágeis juízos humanos. A exegese nascerá da obra que deixou, dos depoimentos dos que instruíram em suas aulas, menos da ação que se esgota com um incêndio e mais da contemplação que se entrosa no processo de uma cultura.
O tempo, que muitas vezes examinou com a curiosidade de quem deseja possuir os segredos do mundo, não o vencerá na participação daquele processo. Queiram ou não os que o combateram e o viram como um visionário, a verdade é que, estudioso da língua do seu povo, Herbert Fortes permanecerá como o primeiro a ter admitido a língua nacional. Quando avançamos, e batido for reacionarismo intelectual desses que oficialmente ainda comandam, dúvida não tenho da volta aos seus livros.
Morto, Herbert será ouvido. E isso, convenhamos, me parece glória.
(in Diário de Notícias, RJ, 20.9.1953.)
Quando o vi a derradeira vez – ele, o nosso Herbert -, suas últimas palavras, ao contrário dos outros, não me fizeram sorrir. Fizeram-me pensar. “Se vivesse quinhentos anos, disse, seria tudo neste mundo”. Viveria alguns dias mais, menos de oito dias talvez, tão pouco que não me foi possível revê-lo morto. Mas, silencioso agora, tranqüilo afinal após meio século de andanças e agitação já não poderá escutar-me e saber que, embora não tenha sido tudo no mundo, sua presença resistirá aos quinhentos anos. Nascido com o destino certo foi o que o homem pode ser mais pobre. Não em estadista, um conquistador, um profeta. Tão somente um sábio e, por isso mesmo, imensamente rico em sua pobreza material.
Preferiu ensinar o que sabia. Mestre sempre, e sempre estudante, não quis outra tarefa senão aprender para transmitir – sua voz ecoando ainda, vibrante, cheia de esperança e compreensão. Professor, e ele o foi no melhor sentido socrático, contentou-se com esse ofício, aos alunos perguntando e respondendo. Em um tempo selvagem, de todas as ambições e todos os egoísmos foi o mais simples e o mais puro. Esse mestre legítimo, porém, jamais traiu a si mesmo na fé que escolhera e na verdade que admitira.
Como Jackson de Figueiredo, um dos seus amigos mortos, não silenciava diante de agressão. Um polemista, se necessário. Um panfletário se preciso. E, se pode afirmar em torno de muda indiferença, não era apenas porque dispunha daquela consciente coragem dos filósofos mas, e sobretudo, porque o atraía o debate nas conseqüências lógicas.
Mantendo-se na posição, reanimada cotidianamente no próprio ato de viver, tornar-se-ia um precursor. Os conhecimentos adquiridos como psicólogo, filósofo e sociólogo, ele os canalizaria para a lingüística, erguendo aí o seu campo de batalha, a luta obstinada que prosseguirá numa série de estudos e livros ainda inéditos. Confessa em tese de concurso para o colégio Pedro II, ter encontrado em sua experiência de professor a origem da reforma didática da língua, indiscutível sendo a distinção entre a língua materna e o tronco português. A flagrante incoerência é a de sacrificar-se uma língua nova aos padrões de um classicismo que não a atinge. Foi mostrando, porém, a distância que separa a língua do Brasil da de Portugal, baseando-se nos princípios da ciência aplicados á nossa fala, que Herbert Parentes Fortes se integrou definitivamente no grande movimento da sua geração – o modernismo.
Os críticos e historiadores da moderna literatura brasileira – com exceção talvez de Tristão de Ataíde e Cassiano Ricardo – sempre esqueceram, na dinamização do movimento modernista, a importância que nele desempenharia o professor do Colégio da Bahia. Contemporâneo da geração como Mário de Andrade e Ronald de Carvalho, como Alcântara Machado e Carlos Drummond de Andrade, e não sendo um ficcionista, poeta ou crítico literário a sua cobertura se fez no sentido de uma justificação científica para a expressão lingüística do movimento artístico. Encontravam-se os escritores brasileiros – e Herbert diria – com “a nosso índole idiomática, a nossa sensibilidade pelicular, os nossos critérios de acerto”. O “genius” de uma língua nova, decorrente de uma autônoma comunidade histórica com valores culturais característicos, impusera finalmente a libertação com o modernismo. Afirmava-se nos motivos folclóricos e nas pesquisas dialetológicas. Literariamente, quebravam-se os dentes dos gramáticos tradicionalistas na força tão nativista do romance pós modernista.
Neste particular – e esta foi a extraordinária contribuição de Herbert Fortes -, o movimento modernista não surgiu apenas como uma revolucionária manifestação estética mas, e principalmente, como a incontida eclosão do “genius” lingüístico. Essa fala natural, que Herbert Fortes demonstrou ser língua brasileira na revelação de condições biológicas, psicológicas e sociais, transladou-se veiculada artisticamente para a língua literária. O escritor brasileiro, sem qualquer interesse em executar um mandamento da escola foneticista que tanto preocupara Dauzart, perdeu conscientemente o “medo de errar em português”. Resolveu sepultar a incoerência, desprezando o classicismo luso para trabalhar com o ouvido no subsolo da língua materna. Conseguiu, por isso, ao tempo em que se encontrava com o povo, suprimir sem pesadelos certas estruturas sintáticas e robustecer o rastro da sua língua no uso mais amplo do brasileirismo.
Os que acusavam os que ainda hoje acusam os escritores brasileiros modernos, precisam compreender que o instrumento de trabalho já não decorre do modelo dos clássicos portugueses do século XVI. Escrevendo, “errando em português” - como dizia Herbert -, o nosso escritor confirma tão somente quanto foi útil e indispensável a participação do professor do Colégio da Bahia.
Relendo-o agora, e como se estivesse a ouvi-lo nessa compensação á ausência que a memória estabelece, posso pressentir o lugar exato que ocupará na moderna inteligência brasileira. Os preconceitos intelectuais já não perturbarão os seus adversários. A agressividade dialética, que foi um dos traços do seu temperamento, intransigente quando configurava a tese em uma estrutura irremovível, já não provocará qualquer hostilidade. Herbert Fortes será julgado agora, de hoje para o futuro, como não o podiam fazer, no fundo da vida, os frágeis juízos humanos. A exegese nascerá da obra que deixou, dos depoimentos dos que instruíram em suas aulas, menos da ação que se esgota com um incêndio e mais da contemplação que se entrosa no processo de uma cultura.
O tempo, que muitas vezes examinou com a curiosidade de quem deseja possuir os segredos do mundo, não o vencerá na participação daquele processo. Queiram ou não os que o combateram e o viram como um visionário, a verdade é que, estudioso da língua do seu povo, Herbert Fortes permanecerá como o primeiro a ter admitido a língua nacional. Quando avançamos, e batido for reacionarismo intelectual desses que oficialmente ainda comandam, dúvida não tenho da volta aos seus livros.
Morto, Herbert será ouvido. E isso, convenhamos, me parece glória.
(in Diário de Notícias, RJ, 20.9.1953.)
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