Lili Castelo Branco
A gente, de quando em vez, reporta-se ao passado. Volta ao trazer ao pensamento cenas inesquecíveis, representadas por quem muito queríamos e jamais esqueceríamos.
Recordo, hoje, gente fina, inteligente, encantadora. Não o faço de maneira ampla, como desejava, dado o pequeno espaço do jornal, que não é só meu.
Apenas faço um resumo daquilo que, na ocasião, mais me emocionou.
D. Corina, alta, magra, feições bem delineadas, era uma criatura triste, raras vezes sorria. Na testa formara-se um fundo vinco, estrada por onde foram passando, um a um, os féretros dos seus filhos, que se ausentaram ara sempre, deixando-a alucinada de sofrimento. De seus filhos, só conheci o Marcelino e o Lucídio. Este, ainda no Pará, eu garota e ele um bonito rapaz. Morava então com o homem que se viria a tornar meu esposo. Heitor, amigo de Clodoaldo (foto), tratava o poeta com carinho.
Marcelito, rapaz simpático e inteligente, era grande animador de iniciativas sociais aqui em Teresina. Até para a escolha de misses seu voto preponderava sobre os demais. Deu de cobrir com lona, as salas onde iriam dançar, para evitar a poeira e imperfeição dos pisos, a essa época, quase todos de tijolos. A moda pegou e, daí por diante, quando havia uma festa, em casa particular, os rapazes se movimentavam naquele serviço.
Também tinha a sobrinha e filha de criação do casal, a Altina, a quem eles muito queriam. Estudava, Eu pouco a via quando das minhas visitas, mas gostava muito dela, por ser mansa, muito bem educada e boazinha.
Dr. Clodoaldo Freitas, homem grisalho, feições bem feitas, inteligência marcante, cultura indiscutível, era o centro de minha maior atração naquela casa amiga. Vez por outra levava-lhe as minhas produções para que as julgasse. Naquele dia, pegou do meu trabalho e leu-o para as pessoas presentes. Mas notou logo o meu descontentamento pelo que fizera e disse-me a olhar-me firme: “Por que esconde o que escreve? Antes, devia mostrá-lo a todos. Você, asseguro-lhe, ainda virá a ser uma romancista”. E abraçou-me, para agradar-me.
Lia para mim as suas produções e eu muito assimilava o que ele ia lendo. Certa ocasião começou a ler para mim trechos de seu livro sobre a Balaiada. – Revolta dos Balaios, guerra civil no Maranhão, de 1838 a 1840. Eu fitava-o atentamente, como sempre fazia quando ele lia para mim e ele, que gostava de estudar-me as reações, espiando-me por cima dos óculos, viu que eu furtivamente enxugava os olhos emocionada. Deu de ler o restante com ênfase, imprimindo força e convicção aos seus protagonistas, com isso minhas lágrimas correram mais abundantes e ele, afastando os óculos para a ponta do nariz, disse-me a rir-se gostosamente.
- “Lili, você pensa que tudo isso é verdade? Que tolice, tem muita invenção minha”.
Com aquilo quis retirar de mim a tristeza que a leitura me ia causando.
Certa tarde, recitava para mim versos de seu filho Alcides, mas, de tal forma se emocionou que, desta vez, quase que era ele quem fazia feio na minha frente. Guardou os versos e eu respeitei sua emoção, não pedi que continuasse.
D. Corina gostava imensamente de mim. Demonstrava em tudo e, por mais que eu lhe dissesse que nascera em Portugal, mas era paraense, ela sempre que eu ia a ela com uma queixa, abraçava-me e dizia-me: “Deixa, minha portuguesinha, Deus está contigo”.
A casa deles era sempre triste. Simples no arranjo e nas pessoas que ali viviam. Pouco movimento de visitas e de criados. O que era habitual era a figura de uma criadinha da cada, Maria Francisca, sentava a um canto da sala, as pernas voltadas para trás, a fazer a sua renda de almofada. Dava-me a impressão, que afora aquilo, nada mais a interessava.
Lucídio veio visitar seus pais e sua terra, o Piauí. Já trazia em si o começo da doença que o vitimava. Trouxe consigo a esposa e filhos. Estes constituíram, por pouco tempo, refrigério às ardências dos sofrimentos da avó. Adorava-os.
Veio o carnaval. O casal não se conteve e brincou o tempo todo. Ele gripou-se fortemente. Acamou e nunca mais se levantou. Ai sim, é que aquela casa, já de si triste, mais se amargurou. O doente piorou, a febre leva-o a variar e, então, poeta que era, recitava alto.
Pedi para vê-lo, saberia portar-me, até o animaria. Clodoaldo levou-me. Com estava diferente, apenas os olhos se conservavam intactos, o resto fora-se com a doença. Ao ver-me, olhou-me muito e disse, forçando um sorriso.
- “Oh! Estrela do céu, vieste trazer luz a este enfermo envolto em trevas?”
Ia prosseguir, mas a tosse sufocou-o e eu caí em choro convulso. Em vez de conforto, levei a certeza da gravidade de seu estado.
Caiu a tarde. Aproximava-se a noite. D. Corina, a um canto do sofá, chorava. Eu, a seu lado, pegando-lhe da mão amiga, procurava confortá-la. Lá para dentro o doente tossia, às vezes acalmava.
Nada mais se ouvia a não ser o bater insistente dos bilros da almofada da Maria Francisca a fazerem: teco, teco, teco.
Recordo, hoje, gente fina, inteligente, encantadora. Não o faço de maneira ampla, como desejava, dado o pequeno espaço do jornal, que não é só meu.
Apenas faço um resumo daquilo que, na ocasião, mais me emocionou.
D. Corina, alta, magra, feições bem delineadas, era uma criatura triste, raras vezes sorria. Na testa formara-se um fundo vinco, estrada por onde foram passando, um a um, os féretros dos seus filhos, que se ausentaram ara sempre, deixando-a alucinada de sofrimento. De seus filhos, só conheci o Marcelino e o Lucídio. Este, ainda no Pará, eu garota e ele um bonito rapaz. Morava então com o homem que se viria a tornar meu esposo. Heitor, amigo de Clodoaldo (foto), tratava o poeta com carinho.
Marcelito, rapaz simpático e inteligente, era grande animador de iniciativas sociais aqui em Teresina. Até para a escolha de misses seu voto preponderava sobre os demais. Deu de cobrir com lona, as salas onde iriam dançar, para evitar a poeira e imperfeição dos pisos, a essa época, quase todos de tijolos. A moda pegou e, daí por diante, quando havia uma festa, em casa particular, os rapazes se movimentavam naquele serviço.
Também tinha a sobrinha e filha de criação do casal, a Altina, a quem eles muito queriam. Estudava, Eu pouco a via quando das minhas visitas, mas gostava muito dela, por ser mansa, muito bem educada e boazinha.
Dr. Clodoaldo Freitas, homem grisalho, feições bem feitas, inteligência marcante, cultura indiscutível, era o centro de minha maior atração naquela casa amiga. Vez por outra levava-lhe as minhas produções para que as julgasse. Naquele dia, pegou do meu trabalho e leu-o para as pessoas presentes. Mas notou logo o meu descontentamento pelo que fizera e disse-me a olhar-me firme: “Por que esconde o que escreve? Antes, devia mostrá-lo a todos. Você, asseguro-lhe, ainda virá a ser uma romancista”. E abraçou-me, para agradar-me.
Lia para mim as suas produções e eu muito assimilava o que ele ia lendo. Certa ocasião começou a ler para mim trechos de seu livro sobre a Balaiada. – Revolta dos Balaios, guerra civil no Maranhão, de 1838 a 1840. Eu fitava-o atentamente, como sempre fazia quando ele lia para mim e ele, que gostava de estudar-me as reações, espiando-me por cima dos óculos, viu que eu furtivamente enxugava os olhos emocionada. Deu de ler o restante com ênfase, imprimindo força e convicção aos seus protagonistas, com isso minhas lágrimas correram mais abundantes e ele, afastando os óculos para a ponta do nariz, disse-me a rir-se gostosamente.
- “Lili, você pensa que tudo isso é verdade? Que tolice, tem muita invenção minha”.
Com aquilo quis retirar de mim a tristeza que a leitura me ia causando.
Certa tarde, recitava para mim versos de seu filho Alcides, mas, de tal forma se emocionou que, desta vez, quase que era ele quem fazia feio na minha frente. Guardou os versos e eu respeitei sua emoção, não pedi que continuasse.
D. Corina gostava imensamente de mim. Demonstrava em tudo e, por mais que eu lhe dissesse que nascera em Portugal, mas era paraense, ela sempre que eu ia a ela com uma queixa, abraçava-me e dizia-me: “Deixa, minha portuguesinha, Deus está contigo”.
A casa deles era sempre triste. Simples no arranjo e nas pessoas que ali viviam. Pouco movimento de visitas e de criados. O que era habitual era a figura de uma criadinha da cada, Maria Francisca, sentava a um canto da sala, as pernas voltadas para trás, a fazer a sua renda de almofada. Dava-me a impressão, que afora aquilo, nada mais a interessava.
Lucídio veio visitar seus pais e sua terra, o Piauí. Já trazia em si o começo da doença que o vitimava. Trouxe consigo a esposa e filhos. Estes constituíram, por pouco tempo, refrigério às ardências dos sofrimentos da avó. Adorava-os.
Veio o carnaval. O casal não se conteve e brincou o tempo todo. Ele gripou-se fortemente. Acamou e nunca mais se levantou. Ai sim, é que aquela casa, já de si triste, mais se amargurou. O doente piorou, a febre leva-o a variar e, então, poeta que era, recitava alto.
Pedi para vê-lo, saberia portar-me, até o animaria. Clodoaldo levou-me. Com estava diferente, apenas os olhos se conservavam intactos, o resto fora-se com a doença. Ao ver-me, olhou-me muito e disse, forçando um sorriso.
- “Oh! Estrela do céu, vieste trazer luz a este enfermo envolto em trevas?”
Ia prosseguir, mas a tosse sufocou-o e eu caí em choro convulso. Em vez de conforto, levei a certeza da gravidade de seu estado.
Caiu a tarde. Aproximava-se a noite. D. Corina, a um canto do sofá, chorava. Eu, a seu lado, pegando-lhe da mão amiga, procurava confortá-la. Lá para dentro o doente tossia, às vezes acalmava.
Nada mais se ouvia a não ser o bater insistente dos bilros da almofada da Maria Francisca a fazerem: teco, teco, teco.
Jornal O dia, páginas 6 e 3
Edição de 10/11/7/1966.
Edição de 10/11/7/1966.
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