Capa do livro Pau de Colher.
Fonseca Neto
Guerra do Pau de Colher: massacre à sombra da ditadura Vargas é o título de um novo livro que se publica, pela Editora Zodíaco, com estudos sobre esse já conhecido movimento ocorrido na região de limites entre o Piauí e a Bahia, na década de 30 do século passado. O autor é Marcos Oliveira Damasceno, um remanescente de protagonistas do episódio, que tem dedicado fartas horas de seu tempo a amealhar informações sobre esses fatos que alguns chamam, não sem pejo, de “guerra dos caceteiros”.
Que movimento foi esse? Mobilização de sentido religioso, tendente ao radicalismo das práticas, com sinais de forte mística, namorando certo fanatismo.
Já são várias as pesquisas, e com suportes conceituais diversos, no tema que preocupa e encanta o autor desta nova contribuição à história do acontecimento que notabilizou essa comunidade chamada Pau de Colher, no município de Casa Nova, Bahia, e sobremodo o de São Raimundo Nonato, Piauí. A área que mais tarde viria a constituir o município piauiense de Dom Inocêncio, separado de São Raimundo Nonato, é habitada por um número expressivo de pessoas remanescentes de famílias-personagens daquele tempo.
O estudo e a presente publicação de Marcos Damasceno estruturam-se sobre as bases da memória de protagonistas da Guerra, colhida em depoimentos e noutras falas na região um dia conflagrada. Recepciona o autor contribuições outras de estudiosos que o antecederam na tarefa de lavrar tais memórias e publicar sobre elas.
Um detalhe, porém, parece conferir algo de singular a esta nova contribuição: ser o autor nascido das entranhas geohumanas da região do Pau de Colher, portanto ter vindo ao mundo numa espécie de imersão memorial sobre o acontecido. Imersão agitada, vislumbre-se, pelos ecos da “caceteria” tangida de lá até o tempo presente em intensas narrativas dos sobreviventes, e, agora, na descoberta de tudo como tema de estudos acadêmicos e outros estudos mais.
Um dos precursores de Damasceno nos estudos sobre Pau de Colher é Demosthenes Guanaes Pereira, que ainda em 1964 escreveu páginas incandescidas de amor à causa da humanidade ao “romancear” o acontecimento, apanhado em grandes linhas nas inspirações fluentes e nas correntezas passantes do rio de Canudos, na mesma Bahia sertã, ao sul do Cariri cicerano, a oeste das Araripinas agrestais de Pernambuco, misturada ao Piauí de tanto Tapuia resistente. Extensa região essa – banhada pelo São Francisco, transposto ou não – cujo povo vive elaborando a vida, em todos os sentidos, sob sóis que escaldam caminhos abertos por pés descalçados. Assim, pés que solam o existir de uma gente fervorosa e rija.
Em que pese vir, já, na epígrafe deste volume, e por si, na intenção do autor, um destaque necessário, não resisto também em trazer para este lugar de apresentação o recorte que segue, de Guanaes, porque ele expressa algo que se comunica plenamente com minha sensibilidade de sertanejo: “Desde as ténebras das idas de novembro de 37, que Pau de Colher é uma espécie de corpo estranho em minha cabeça. Necessitava extraí-lo para expô-lo ao Brasil sempre tão mal informado. Vi meu Sertão talado, ainda com as feridas abertas pelo coronelato, desde 20, sangrando. Terra arrasada. Povo humilhado e abandonado à procura duma taboa de salvação no Céu, por falta de tudo na Terra. Unindo-se, aparentemente, pelo fanatismo religioso, tais movimentos o foram antes tentativas de libertação.
De Canudos a Pau de Colher o quadro dirigente nacional não evoluiu um átimo (instante, momento). Esteve sempre entre a falta de cumprimento de seus deveres sagrados para com meus conterrâneos e a bestialidade do genocídio. Aniquilar o ignorante que fora um crime, em vez de destruir a ignorância que seria um programa de governo. Balas em lugar de livros. Soldados em vez de professores. Batalhões guerreiros em vez de técnicos. O fanatismo autoritário dos poderosos contra o fanatismo impotente dos flagelados.
De Canudos a Pau de Colher a mentalidade dirigente do país não progrediu. Tristeza para minha geração...”
Nosso sertão aguilhoado pelo coronelato: tão bom que essa realidade vivida nos 37 pelos “paucolherinos” fosse, tal a evocação da poética libertária, nada “mais que meras cicatrizes na História”. Não, esses sertões profundos, por diversas formas, ainda vive sonhos e “tentativas de libertação”. O quadro dirigente nacional até que evoluiu, em certo sentido, mas naquele sentido mais real, afigurado no viver concreto, a miséria saltando aos olhos, muito há por conquistar em face das estruturas de exploração muito reiteradas que atormentam o viver de milhões que habitam essa parte do Brasil. Aliás, lembra Durval Muniz, ressignificou-se uma palavra para designar a operação mortífera dessas estruturas de miséria e morte expressas na ação dos coronéis de ontem e de hoje e assim inventou-se o “Nordeste”.
As amarras estruturais a desatar são tão apertadas em séculos de torpe exploração, que ainda hoje a subjetividade de milhões como que esmorece e naturaliza o estado de opressão reinante. De ditadura em ditadura; de aqui e acolá, uns e outros experimentos de liberdade de participação ativa na construção da vida social; um e outros programas de governo – mas é dura na queda a engenharia da miséria. Está em pleno vigor, reiterada, atualizada, a prática do aniquilamento dos supostos “ignorantes” e não da “ignorância”. Agora mesmo quando concluo estas linhas, os moderníssimos meios de comunicação noticiam o assassinato de vários trabalhadores rurais que lutavam por terra e liberdade no Pará. Pior: notícias fraquinhas, que mais deixam na cabeça de quem as ouviram a sensação de que são eles os maiores culpados de sua morte, e nem a mais pálida lembrança de que vítimas de uma estrutura de poder e exploração brutais em pleno vigor no chamado “Brasil moderno”.
Pau de Colher é expressão aguda de culturas duramente engalfinhadas, entre o ato de aparente singeleza consubstanciado no crê e a crueza brutal do flagelo fanatizado das dilacerações, exemplificadas nos atos sacrificais de crianças em rituais mais danados que santos.
Damasceno leu bastante sobre Anos 30, Poder, Messianismo, Coronelismo, Cangaço, Comunismo, Caldeirão, Canudos, Católicos, Cariri, Coluna (de Prestes) – no presente trabalho ele chama a si a tarefa de balizar seu tema nessas linhas contexto-conceituais. E como lida com materiais de falas primárias acaba por correr alguns riscos de trazer ao conjunto de seu argumento esses fragmentos memoriais filtrados em devoções parentais e de extremo apego à terra agitada de seu nascimento. Tem o cuidado, porém, quase no limite, de trazer a esta compendiação muitos textos de transcrições de falas como as que ele recorta da Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, da pesquisadora Maria Cristina Pompa, intitulada “Memórias do fim do mundo / Para uma leitura do movimento sócio-religioso de Pau de Colher”.
Esse estudo de Pompa parece dos que mais falou pela fala dos protagonistas. Nele o detalhe, pelas narrativas vindas como que diretas do campo das lavraturas embatentes. Com muita erudição, secunda-lhe Filipe Pinto Monteiro, com o ensaio “Entre terços e cacetes: uma nova tentativa de interpretação do movimento messiânico/milenarista de Pau de Colher (Casa Nova, Bahia, 1934-1938”, que examina, ao pormenor, a centralidade da figura de Severino Tavares nessa geografia de entre o Caldeirão e Pau de Colher. Todos retomam Maria Isaura Pereira de Queiroz.
Como já se disse e fica demonstrado, Damasceno tem essas leituras textuais da elaboração acadêmica sobre o acontecimento do Pau de Colher, contudo, de seu viver entre os sobreviventes conhece e repassa, a seu talante, relatos que escuta da tiarada avoenga, inferindo deles a sua verdade.
Pau de Colher esteve e está nos fundões do Brasil. Sua história revela os enleios da catolicidade rústica disseminada nestas franjas da Roma dilatada, cujas locuções aqui chegaram muitas vezes tais ecos inaudíveis. Surtos milenaristas, a centúria sebastianista, a profética beata alastrada, o sertão peregrino, tudo isto constitui amálgama de santificação ou danação da gleba, ocorrente por essas zonas em que a fala de Roma não é, necessariamente, a última palavra.
As inquietações que fizeram Damasceno virar escritor destas tantas muitas linhas, enlinhando-se com outras boas tessituras, acredito que surgiram ao perceber ele nas falas das varandas familiais, essas histórias terrificantes ali mesmo dadas, mas fenômeno discernível com as artes e saberes do mundo.
Dom Inocêncio é lugar recôndido prostrado naquelas serranias de tanto mistério. Está nos braços da serra Dois Irmãos, perto dos capivarões de Guidon (Niède Guidon), das Confusões, palco ancestral de outras guerras quentes, como as da colonização, que adubaram com sangue de gente inocente o chão donde brotariam os anjos vingadores das histórias de depois.
Está dada esta contribuição de Marcos Damasceno. Agora ele fica muito bem com os tios Zeca (Damasceno) e Vasti, com Janjão e tantos mais. As histórias dos fins de noite naquelas dobras sertãs que o menino ouvia, ele, em sua própria danação, trombeteia aos quatro ventos.
Faz sua parte. Timbra a fala dos seus rincões sanfônicos.
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Fonseca Neto - Professor, historiador. Membro do Instituto Histórico do Piauí e da Academia Piauiense de Letras. Doutorando da Universidade Federal do Piauí – UFPI)
2 comentários:
kENARD "O cRUEL", amigo aqui é Edson Gallo, presidente da Academia de Letras de Araguaina e norte do Tocantins - ACALANTO.
Estivemos juntos na PUC MINAS por ocasiao da pós de Literatura Brasileira. Eu gostaria muito de aduirir o livro sobre Torquato Neto e mantermos contato para uma aproximação entre a nossa Aademia e a do Piaui... aguardo contato.
Edson Gallo. edsongalo@gmail.com
Aonde encontro esse livro?
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