quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Incidente em Oeiras

A blague da trombada em Oeiras.

(*)
Gerson Portela Lima

É comum encontrar-se nos relatos de acadêmicos e pesquisadores menções sobre um certo clima de desconfiança pairando na atmosfera social de Oeiras ante a presença de alguém estranho que ali aporta. Relatam sobre janelas de casarões que se entreabrem ligeiramente à passagem do visitante. Outras vezes falam de olhares furtivos espreitando através de brechas abertas nas folhas das portas. Ocasionalmente a desconfiança pode se transformar em ações práticas, de fundo passional, carregada de amadorismo, porém rápida, fulminante, sem rodeios e claramente objetiva, mesmo que seja apenas para intimidar o forasteiro, intentando mostrar que a terra agora tem dono e vai reagir. Mas, reagir a quê? Ora, relata a história, que lá por meados do século dezenove, vivia Oeiras confortável, gozando do status de Capital. Detendo o poder de mando sobre a Província do Piahuy, crescia satisfeita, ciente de sua liderança político-administrativa e de sua convicção religiosa. Guarneciam a Semana Santa as seculares procissões. Esmeravam-se na representação dos presépios natalinos. Não se conhecia deferência maior que a prestada na recepção ao bispo da Província Eclesiástica, quando ficava a cidade triunfante, engalanada e buliçosa. Isso, nessas ocasiões, porque no restante do ano os oeirenses entregavam-se, com inteira devoção, àquele mandamento que diz: “crescei e multiplicai-vos”, em outras palavras, enchei a terra de menino.
Aí deu-se, então, aquele fatídico fato histórico, por demais conhecido, em que Oeiras recebeu em seu solo um certo dignitário graduado da Coroa. O referido, ocultando suas reais intenções ali ficou por pouco tempo, até que, certo dia, no romper da aurora, os oeirenses, atônitos e tomados de profundo desgosto, deram-se conta de que o ilustre homem havia empreendido fuga noturna levando consigo o poder de mando, as autoridades militares, as armas e o cofre da arrecadação dos impostos. Assim, abruptamente esvaziada, Oeiras nem esboçou reação, e nem adiantava. Qual Moisés à frente dos israelitas atravessando o mar Vermelho, a comitiva em fuga já tinha transposto a já existente ponte sobre o Mocha, tomando rumo ignorado. Tendo assim a “terra-berço” repudiada, restou aos oeirenses, parece, fazerem um pacto de honra. Doravante defenderiam Oeiras adotando uma atitude preventiva, claramente de desconfiança com qualquer visitante. Não seriam pegos desprevenidos outra vez. Até o princípio jurídico da presunção de inocência foi retorcido para presunção de traição, até prova em contrário.
Em vista disso, faço o relato de um incidente em Oeiras do qual fui personagem-ativo, mesmo contra a minha vontade. Faz um bom número de anos que técnicos da Fundação CEPRO, vinculada à Secretaria do Planejamento do Estado, detectaram um problema que estava trazendo certos resultados negativos à administração estadual. Cada secretaria havia dividido o Estado em regiões ou circunscrições ao seu bel-prazer, tanto em número quanto em limites, em tudo diferente umas das outras. A expressão popular “colcha de retalhos” retratava bem a situação, trazendo sérios entraves ao planejamento estadual. Coube à CEPRO elaborar um estudo criterioso, que resultasse em uma regionalização única e coerente, a ser adotada por todas as secretarias. Fui o coordenador desse estudo, que tanto requeria estatísticas secundárias, quanto levantamento “in loco” dos inter-relacionamentos e vinculações espontâneas entre a cidade visitada e as demais do Estado. Preliminarmente definimos, em gabinete, pelo critério demográfico, as prováveis cidades-pólo ou cabeças de região. Oeiras foi uma das cidades hipoteticamente definidas como tal. E o levantamento das suas inter-relações é que iria definir seu “status”, assim como em todas as demais do Estado, valendo lembrar que nessa época o Piauí possuía apenas 118 municípios. A equipe se deslocou para Oeiras, tendo em mim o coordenador, três estudantes universitários em férias, treinados para a função de entrevistadores de campo, e o motorista da Fundação. Ao final do primeiro dia de trabalho, após o jantar no hotel, os entrevistadores me propuseram e fomos, juntos, à praça principal, onde fica o Cine Teatro Oeiras, a fim de espairecer um pouco e conhecer melhor a cidade. Lá chegando, nos posicionamos em pé, em semi-círculo, debaixo de um poste cilíndrico, de ferro, com forte luminária. Ficamos então a olhar para o ambiente. Não havia passado nem três minutos da nossa chegada quando fomos sacudidos por um forte estrondo no poste à nossa retaguarda. No piso da praça o clarão da luminária passou a oscilar freneticamente correndo de um lado para o outro. Olhamos para cima, os cabos da rede elétrica balançavam como fora de controle. Minha impressão imediata foi a de que algum veículo desgovernado havia subido o passeio e trombado no poste. Em milésimos de segundos procurei os entrevistadores, pois afinal era o chefe e responsável por eles. Os três haviam dado um salto para a frente mas estavam bem, apenas pálidos e com os semblantes paralisados. Lembrei-me do motorista, que, ainda bem, estava no mesmo lugar de antes, à minha direita, mas havia perdido a voz, sendo que seu olho esquerdo estava tipo “pisca-pisca”, intermitentemente. Sua perna direita havia se deslocado para a frente, com o calcanhar apoiado no chão e a planta do pé como se estivesse acelerando. As mãos e os braços traçavam círculos no ar, como a torcer uma direção para a esquerda ou direita. De vez em quando desmunhecava a mão direita, para trás e para baixo, vezes seguidas, num gesto típico de passar marcha em caminhão antigo. Depois de alguns segundos observando toda gesticulação entendi que ele estava tentando se comunicar comigo, insinuando que um caminhão desgovernado havia subido o passeio e trombado com o poste.
Nisso, olhamos todos para trás, procurando o epicentro de toda aquela confusão. Não havia carro algum com a frente enfiada no poste. Havia apenas um homem de pé, o braço direito apoiado no poste, com a mão espalmada. Seu semblante era de vitória, de quem tinha acabado de operar uma formidável demonstração de força, e seu olhar, que percorria todos nós, dos pés à cabeça, esperando talvez alguma reação de nossa parte. Aí, para alívio nosso, resolveu falar:“Zé Rubens, rapaz! - gritou o homem inesperadamente – é você, meu amigo!? O que você está fazendo aqui em Oeiras? Pensei que vocês fossem todos de fora... quer dizer, estranhos!” Foi a nossa sorte. Eu não havia percebido, mas o oeirense já nos havia focado um a um, estudando e perscrutando nossas intenções, até que por fim reconheceu o entrevistador José Rubens, com quem privava de amizade (trata-se do dr. José Rubens de Sousa, odontólogo em Teresina). Nasceu deste episódio aquele dito popular de que “mais vale um amigo na praça, que dinheiro no banco”. Só desse modo pudemos relaxar. Apresentados a ele, respiramos aliviados e fomos até tomar uma cervejinha no Café Oeiras, para dormirmos mais tranqüilos. Soubemos depois que o nosso recepcionista, tão “acolhedor” era a autoridade que exercia a função de chefe ou diretor, não lembro mais, da Coletoria, ou Exatoria, estadual, na cidade. Já no hotel, mais aliviados, comentamos sobre aquela atitude de sentar a mão espalmada no poste para nos intimidar, ao que José Rubens interveio: “Que nada! Eu conheço ele. Na certa tinha alguma paquera na praça e ficou com ciúmes da gente!”. Sei não... Muito simplista a versão. Para quem conhece a história de Oeiras, essa reação fulminante era previsível. Faltou lá atrás e está vindo agora redobrada. Por isso, não duvido nada que ele não estava protegendo paquera nenhuma, e sim a “terra-berço” dos forasteiros e suas intenções desconhecidas. Em outras palavras, cumpria à risca um juramento que ancestrais fizeram séculos atrás.
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(*) Gerson Portela Lima é economista e ex-superintendente da Fundação CEPRO

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