sábado, 10 de julho de 2010

Ricos pra cachorro

Machado de Assis.

Jose Maria Vasconcelos


Privilegiado sou. Deito-me, logo embarco no sono, bem antes da meia-noite. Desta vez, porém, assistindo ao Domingo Espetacular, da TV Record, demorei mergulhar no onírico, depois de ver dondoca e milionária americana, morta de câncer, que deixara, em testamento, bolada de quase 300 milhões de reais. Para o filho só reservara miseráveis 3 milhões. Outro tantinho para empregados da súper mansão. Quase a totalidade da grana fora esbarrar nas mãos, digo, patas, de uma cadela do chamego da falecida. Como eu poderia adormecer com tamanha frivolidade existencial, inclusive de alguns ricaços americanos, que destinam heranças para bichos, com as bênçãos das leis daquele país?

O episódio recorda-me genial romance de Machado de Assis. O milionário Quincas Borba, antes de morrer, confia sua fortuna ao enfermeiro e amigo, Rubião, desde que cuide de seu cachorro, homônimo do falecido. Rubião, ingênuo e abobalhado, cerca-se de amigos oportunistas que lhe minam toda a riqueza, levando-o à loucura, pobreza e morte, bradando: “Ao vencedor, as batatas!”


Batatas, melancólico saldo de brincar de gastar com frivolidades, exibicionismo da fortuna fácil, habitualmente adquirida sem talento, sem mérito. Pais que distribuem, fartamente, dinheiro entre os filhos, sem lhes cobrar dignidade do estudo, esforço e conduta nobres. Bill Gates, magnata americano, tem um discurso de pão-duro aos ingênuos pais da distribuição gratuita e afeto exagerado. Ele inicia pelos cuidados para com a limpeza do quarto e pequenas tarefas de casa, como lavar carro e cuidar das plantas. O bilionário rachou sua fortuna, destinando impressionantes 50 bilhões de dólares para obras filantrópicas e científicas, desabando da primeira colocação entre os mais ricos do mundo. Genial Miguel Ângelo, pintor e escultor renascentista da Pietá, Moisés, Davi, Adão e Eva, muitos afrescos, apesar da imensa fortuna acumulada, jamais se afastou da fidelidade a Deus, traduzida em generosidade até a morte, aos 88 anos.

É bom riqueza. É bênção. Mas inferno de desgraças, se construída com desvios ilícitos, contracheques imorais, malandragem. Herança perigosa e fatal para os descendentes. Vale, então, o princípio de Cristo: “Mais fácil camelo entrar pelo fundo da agulha do que rico entrar no céu.” Agulhas eram fendas, nas muralhas de Jerusalém, por onde vigilantes observavam inimigos se aproximarem. As agulhas de nosso tempo são as câmeras escondidas denunciando mundão de imoralidades entremuros da administração pública. Só a justiça divina sabe o quanto se paga, ainda em vida, a herança da riqueza suja, talentos não bem aplicados.

A responsabilidade social, tão decantada pelas cartilhas empresariais modernas, deve-se estender, também, na consciência coletiva de cada cidadão. Paradoxal comportamento cristão, quando se alimentam e se mimam bichos, de costas para bolsões humanos, necessitados e excluídos. “O que fizerdes a um desses pequeninos é a mim que fazeis.” Eis o caminho do céu. Sem esta consciência, como poderei embarcar em doce repouso, bem antes da meia-noite?

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