domingo, 4 de julho de 2010

À mesa com Saramago

Paulo José Cunha, Saramago e Verônica.

Paulo José Cunha

Quando o jornalista Lustosa da Costa me ligou com o convite para ir jantar em sua casa na companhia de José Saramago, não acreditei que era verdade. Mas como já conheço esse cearense há algumas dezenas de anos e sei de seu atrevimento, terminei por acreditar que ele iria mesmo receber o português que havia me impressionado fortemente quando concluí a leitura de Jangada de Pedra.

Com a ironia afiada, sua marca registrada, Lustosa provocou: - Preciso de gente inteligente para entreter o homem, Bozó. E tu és metido a sabido, bicho. Trata de vir, não vai falhar, heim?

Que enrascada. Apesar da tentação dos camarões e dos líquidos preciosos que Lustosa e Verônica não economizam quando recebem amigos, objetei que, de Saramago, só havia lido a Jangada. E gostara (apesar das frases compriiiidas e da ousadia da falta de pontuação). - Pois olha, Bozó, trata de ler e logo O Ano da Morte de Ricardo Reis e o que mais encontrar por aí, porque vou te colocar na mesa do homem. E vais ter de arrumar assunto pra conversar com ele, ordenou.

Cá comigo, pensei: Saramago é comunista, logo há de gostar de falar sobre a obra de outro comunista, o colombiano Gabriel García Márquez. E essa eu conheço bem, li tudo dele. Se o problema é papo, pode deixar que eu resolvo.

Lustosa havia conhecido Saramago numa de suas viagens à Europa, não me lembro mais em que circunstância, acho que num evento na embaixada do Brasil em Portugal. Atrevido como é, convidara o português para jantar, quando voltasse a Brasília, onde já havia estado algumas vezes. Saramago não se fez de rogado. Ao vir receber o prêmio Luís de Camões, cobrou de Lustosa e o jantar foi agendado. Naquela noite, acomodaram-no entre mim e a Verônica (foto). Lustosa, agitado como sempre, pulava de mesa em mesa.

Noite inesquecível. Até porque o receio inicial de conversar com um intelectual do porte de Saramago (que alguns anos depois conquistaria o Nobel) e cometer alguma gafe logo se desvaneceu diante de sua simpatia e franqueza. Franqueza que quase nos mata de rir quando contou, entre generosas taças de vinho, da overdose de Juscelino que havia tido ao se hospedar no Kubitscheck Plaza, em Brasília, onde a figura do construtor da Capital é reverenciada em todos os ambientes. “Pois nunca na vida convivi tanto com um homem como tenho convivido com vosso Juscelino. Durmo com ele e acordo com ele. Encontro-o à entrada, no hall, no desjejum, em toda parte. Até quando estou nu já me deparei com ele, em plena casa de banhos”, dizia, às gargalhadas. Uma senhora que se sentava à nossa mesa não gostou. Quando ele saiu para ir à “casa de banhos”, mostrou-se incomodada ao vê-lo “zombando” da figura de Juscelino. Deu-me pena de ela não perceber que Saramago queria apenas um motivo pra deixar mais descontraída a conversa com quem provavelmente nunca lera uma página de suas obras. Pedi-lhe que relevasse, não havia zombaria, só brincadeira pra descontrair o ambiente. Não adiantou. Retirou-se antes que ele retornasse. A conversa correu. Revelou que o que desejava mesmo era ser um andarilho, pra espiar em detalhes todas as bibocas do mundo. E depois contar tudo o que visse (nosso jantar foi terminar num de seus livros de viagens). Paradoxalmente, disse ter preguiça de viajar. Confessou-se fã da arquitetura de Brasília. Mas, novamente às gargalhadas, perguntou se quando Brasília havia sido construída não haviam inventado tintas de outras cores. “Ora, pois! Tudo é branco por aqui! Quando encontrar Oscar (Niemeyer) vou indagar-lhe se não gosta de cores”.

Não sei se indagou. Certo é que tivemos uma noite memorável. E nem precisei citar o nome de Gabriel García Márquez...

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