Monteiro Junior
A arte, de um modo geral, sempre encontra formas e maneiras de se manifestar em qualquer canto que seja. A sedução pela arte é inerentemente humana e ultrapassa fronteiras geográficas, tecnológicas e intelectuais. Sendo a arte a própria expressão do íntimo humano, ela não deve se limitar a regras e normas, embora na maioria das vezes tenha bases muito bem definidas que terminam cristalizando dogmas. Foi Riccoto Canudo, no seu Manifesto das Sete Artes, quem dogmatizou o Cinema como sendo a Sétima Arte, dentro da qual dialogariam todas as outras, desde o Teatro à Música.
Infelizmente, não é possível eleger um teórico que clarifique e sistematize a produção audiovisual piauiense, sobretudo pelo fato de que há controvérsias se se pode ou não falar de um cinema piauiense. Obviamente que as origens disso remetem à própria questão da autoestima baixa do nordestino, acentuada em nosso Estado. A cultura daqui é um mix das outras que nos cerceiam, o que impede uma formação mais contundente de uma identidade cultural forte. Se não temos sotaque, não devemos ter cultura.
Tal pensamento autossabotador é escutado em qualquer palco vazio ao nosso lado. Um exemplo disso é quando a unanimidade relaciona os primeiros passos do “cinema piauiense” a produções amadoras no final da década de 60 e 70. No entanto, é importante lembrar que o Estado conheceu o cinema desde seu início, praticamente. As primeiras exibições experimentais de filmes na capital e interior datam de 1901, trazidas por empresários estrangeiros. Logo no alvorecer da nova arte fomos apresentados a ela. Nas décadas seguintes, as sessões de cinema se configuraram como a principal diversão do piauiense, ocasionando o boom dos cinemas de rua, como Cine Royal, Cine São Luis, entre outros. Temos, ou tínhamos, o segundo cinema de rua mais antigo do país. O Cine Rex foi inaugurado em 26 de novembro de 1939 com a exibição do filme A Grande Valsa e formou as mais diversas plateias nas mais diferentes épocas e acompanhou grande parte das transformações pelas quais a produção cinematográfica passou, incluindo a sua própria.
Foi perto dali que um grupo de jovens se reuniu para produzir um jornal com o objetivo de levar cultura à população. Paulo José Cunha, Edmar Oliveira, Arnaldo Albuquerque, Carlos Galvão e Durvalino Couto Filho sentaram-se nas gramas da Praça da Liberdade com o objetivo de fazer um movimento trazendo a cultura para mais perto da população. Por conta disso, o jornal foi chamado de “Gramma”, e graças a uma entrevista dada por Torquato Neto nasceu o primeiro curta-metragem piauiense, Adão e Eva no Paraíso de Consumo (ou Do Paraíso ao Consumo), protagonizado pelo próprio e por Claudete Dias. A ele, seguir-se-iam muitos outros.
A produção audiovisual piauiense sempre pertenceu, como podemos ver em sua pequena trajetória, ao coro dos descontentes. Sempre foi intimamente ligada aos movimentos cineclubistas, nos quais se viam clássicos, discutiam-se tendências e experimentavam-se pequenas e ousadas gravações. Muito arraigado a questões sociais e politicamente reacionárias (frutos da Ditadura Militar), não inovou em estética ou linguagem. Bebeu na fonte da Nouvelle Vague da França, do Neo-realismo da Itália e do Cinema Novo brasileiro para, dessa mistura, registrar o clima sociocultural de uma época. Assim tivemos o movimento setentista em super-8, no qual Torquato Neto foi grande expoente, defendendo a precária tecnologia: “Cinema é um projetor funcionando, projetando imagens em movimento sobre uma superfície qualquer. É muito chato. O quente é filmar”.
E na quente Teresina da primeira metade da década de 70 saíram filmes como David a Guiar (também conhecido como As Feras), de Durvalino Couto Filho, Porenquanto, de Carlos Galvão, Terror na Vermelha, de Torquato Neto, entre outros, além das animações de Arnaldo Albuquerque e do longa-metragem Guru das Sete Cidades, que recebeu apoio estatal e foi satirizado por Noronha Filho com o seu Guru das Sexys Cidades, que vem acentuar o caráter marginal à produção desenvolvida no Piauí até então. Em geral, eram filmes de curta duração sem som direto que contavam uma história ou mesmo fragmentos de um específico cotidiano com uma trilha sonora da época (David a Guiar transcorre todo ao som de “Dark Side of the Moon”, álbum do Pink Floyd de 73).
Depois da morte de Torquato Neto, a produção piauiense efervescente ficou tímida. No final da década de 70, outros cinco jovens que participavam do Cineclube Teresinense resolveram colocar em prática seus estudos na área de cinema. Criaram, para tal, o grupo “Mel de Abelha”, que realizou sete curtas: Povo Favela (78), Pai Herói (80), Relógio do Sol (81), Espaço Marginal (81), O pagode de Amarante (85), Dia de Passos (85) e Da Costa e Silva (85). “Mel de Abelha” era formado por Dácia Ibiapina, Valderi Duarte, Luis Carlos Sales, Socorro Melo e Lorena Rego. Os principais temas tratados pelas produções do grupo são as questões morais, educação, cidadania e uma preocupação em resgatar as tradições culturais do Estado.
A sátira e a ironia eram características presentes nesses filmes, por serem crias do período da Ditadura e Censura. O que pode-se perceber é que, na contramão do cinema nacional, que se deslumbrava com o Cinema Novo, o Piauí via no Cinema Marginal sua única forma de uma manifestação audiovisual efetiva. Uma das causas da “adoção” desse formato não deixa de ser a precariedade de recursos. Até a década de 80 não havia nenhuma lei de incentivo ao cinema. Todo o desenvolvimento do audiovisual no Piauí era de inteira responsabilidade de seus criadores – como ainda o é. No nosso Estado não se falavam em leis de incentivo e políticas públicas, financiamento, além de incentivo à pesquisa. Uma realidade que não mudou muito, numa análise contemporânea.
Do modo como operaram suas bases e transformações, a produção audiovisual piauiense esboça um sentimento de não pertencimento dentro da história do cinema nacional. Por não se adequar ao mainstream tanto do Cinema Novo quanto do Cinema Marginal, resumiu-se a um olhar muito particular sobre nós mesmos. O nosso protesto é mais econômico e social do que político ou existencialista, embora tudo pareça estar no mesmo pacote. Enquanto Ruy Guerra mexia com o militarismo em Os Fuzis, Durvalino Filho mostrava os hippies daqui em David a Guiar. Nossos temas parecem ser de interesse só nosso, feito de uma maneira a construir uma identidade visual piauiense a partir do cotidiano de uma época, ou de épocas diferentes.
A primeira metade da década de 90 é marcada pelo fechamento da Embrafilme, que desertificou a produção nacional. Muito tiveram que se reinventar para sobreviver (Arnaldo Jabor virou jornalista) e outros simplesmente se deixaram morrer. No Piauí, começam a acontecer as iniciativas isoladas que continuam até hoje de jovens crescidos na geração dos videoclipes. Douglas Machado faz o curta-metragem A Ponte em 1994, já esboçando o olhar que seria marcante nas produções do fim da década e início da outra da noite teresinense e da juventude que anseia por diversão e arte. Com muita persistência, lança seu Cipriano em 2001, fazendo desabrochar um sentimento de Cinema por parte da população. Com isso surgem os nomes de Dalson Carvalho, Alan Sampaio, Monteiro Júnior, entre outros, que se destacam depois de várias produções amadoras no fim do milênio.
A vertente marginal volta a ser assumida com as produções de Aristides Oliveira, que também organiza a Mostra de Cinema Marginal, já com duas edições. Também ocorre o boom dos documentários legitimamente piauienses, com uma preocupação econômica e social mais frouxa, porém ainda presentes nas entrelinhas. Os editais, as leis de incentivos, o apoio das empresas privadas começam, ainda que timidamente, a fazer parte da vida dos jovens cineastas do Estado. A televisão se rende e começam a aparecer programas voltados para cinema e com a exibição de curtas-metragem feitos aqui, assim como tem acontecido mais festivais e mostras de filmes nossos, com público a cada ano maior.
As salas de cinema, agora presas aos shoppings, também começam a abrir suas entradas às produções locais. Depois de Cipriano, tivemos exibições de No Meio do Caminho (2004) e Insone (2005), de Monteiro Júnior, O Confidente (2005), de A. José, e Entre o Amor e a Razão (2006) e Ai que Vida! (2007), de Cícero Filho. O sucesso deste último mostra o quanto o público está ávido por produções que o refletem na tela grande. Nas salas foras do shopping, digamos assim, pudemos conferir vários curtas e documentários, como Um Corpo Subterrâneo (2007), de Douglas Machado, A Noite e a Cidade (2005), de Monteiro Júnior, O Cine Rex e Nós (2007) e Um Homem sem uma Câmera (2007), de Alan Sampaio, e Corpos Humanos (2007) e Quem São os Mestres? (2008), de Dalson Carvalho, entre diversos outros.
Após o movimento em super-8 nos anos 70 e o Mel de Abelha na década seguinte, não tivemos mais manifestações coletivas e unidas em prol de uma produção audiovisual. Talvez o mais perto que se tenha chegado disso na nossa história recente tenha sido o movimento denominado Kitupira, que tinha à frente o jovem cineasta Alan Sampaio. Contudo, com sua morte precoce no Natal de 2007 não houve tempo para o Kitupira mostrar a que veio. De agregação de pessoas com vontade de se expressar por meio do audiovisual, têm-se as oficinas realizadas pela Associação Brasileira de Documentaristas – seção Piauí, que busca formar jovens capacitados a compreender tecnicamente o cinema e a estar apto a realizá-lo, promovendo viagens ao interior e produção de curtas-metragens com seus participantes.
Como o campo cinematográfico entrecruza com os campos cultural, no caso as outras artes, político (filmes com mensagens políticas, com ideologia, e até mesmo a falta de políticas de financiamento e apoio), econômico (o difícil acesso aos equipamentos, na grande maioria caros, e a falta de apoio de instituições e governo) e social (interesse das pessoas em conhecer e apreciar a produção local), é preciso um fortalecimento desses campos para que a produção audiovisual possa se cristalizar. Ainda parte de iniciativas isoladas e vem conquistando espaço graças às temáticas nas quais o público se reconhece na tela. Algumas são mais universais e outras mais específicas. Os movimentos cineclubistas estão escassos, o “cinema piauiense” agora pertence a angústias individuais de jovens com vontade de se expressar. Ele se reconhece no vazio das relações interpessoais. Na falta de ideologias, fala-se de si mesmo. Se depender disso, ainda seremos espectadores de muitos filmes genuinamente da terra.
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Colaboração: Ivana Machado, Nina Nunes, Naira Sérvio e Afonso Rodrigues.
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