segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Fundação da Vila de São João da Parnaíba

Jesualdo Cavalcanti Barros. Foto sem crédito.

Jesualdo Cavalcanti Barros*

(Publicado no Diário do Povo, O Bembém e revista De Repente)

Se é verdade que em todo o Nordeste a colonização se processou do litoral para o sertão, o Piauí haveria de marcar a diferença, pois, invertendo esse itinerário tradicional, ela teve curso do interior para o litoral. É natural que assim ocorresse, posto que, apesar das investidas pioneiras do navegador Nicolau de Resende no delta do Parnaíba por volta de 1571, nosso grande rio, ao contrário do São Francisco, não serviu de via condutora dos desbravadores em demanda dos sertões. Em outras palavras, embora ostentando a privilegiada posição de segundo maior do Nordeste, tanto em extensão como em volume de água ou mesmo em dimensão da bacia hidrográfica, não facilitou a colonização nem a integração do Piauí. Isto é, nessa fase não exerceu papel civilizatório significativo. Tanto que, ao longo de seus quase 1.500 km de curso, não havia na margem piauiense, até 1762, uma só cidade, vila ou mesmo freguesia.

COLONIZAÇÃO DO PIAUÍ

Somente 174 anos depois do descobrimento do Brasil teria início, efetivamente, o processo de colonização do Piauí. E tal ocorreu com a entrada de fazendeiros luso-baianos nos então chamados Sertões de Dentro do Piagohy, de que resultaram a dizimação das populações nativas, a concessão das primeiras sesmarias e a fundação dos primeiros currais de criação de gado. Beneficiaram-se dessas doações duas duplas de irmãos – Francisco Dias de Ávila/Bernardo Pereira Gago e Domingos Afonso Mafrense ou Sertão/Julião Afonso Serra – os quais receberam do governador de Pernambuco, dom Pedro de Almeida, em 1676, nada menos de quarenta léguas quadradas de terras nas margens do rio Gurgueia (uma só légua correspondia a 4.356 hectares).

Principiava-se, dessa forma, uma brutal política de dominação do Piauí pela Casa da Torre e seus sócios. A elas se somariam, antes de findar-se o século XVII, outras centenas de léguas. Assim, nosso território logo seria transformado num imenso latifúndio improdutivo, salpicado de currais que se distribuíram por alguns vales úmidos, sobretudo os do Gurgueia, Canindé, Piauí e Longá.

BAIXA URBANIZAÇÃO

Tinha que redundar nisto: escorada a economia numa pecuária extensiva que se movia por força do trabalho escravo, inexpressivos eram os contingentes humanos. E as poucas manchas de gente que se notavam, não raro viviam segregadas em fazendas a léguas de distância umas das outras. População rarefeita, já o padre Miguel de Carvalho, na Descrição do Sertão do Piauí, de 1697, contava apenas 605 pessoas residentes nas 129 fazendas que visitara, das quais identificou apenas uma branca casada. Vê-se que a imigração era basicamente masculina. E assim os homens recorriam ao aconchego das escravas índias ou negras. Por outro lado, nenhuma prática comunitária. Daí a lenta formação de núcleos urbanos, base do convívio humano vinculado a anseios ou interesses comuns. Se as pessoas não viviam próximas das outras, não nutriam as mesmas aspirações, não buscavam objetivos que as unissem socialmente, como poderiam se agregar e formar aglomerados urbanos? Para exemplificar tamanho isolamento, basta dizer que a primeira vila – a da Mocha, também depois nossa primeira capital e sede de comarca única – só foi instalada em 1717, mais de quarenta anos após a fundação dos primeiros currais.

DESCENTRALIZAÇÃO

Pois bem, inaugurada a Capitania do Piauí com a posse do governador João Pereira Caldas (1759), urgia descentralizar a administração do vasto território. Para isso, carta régia do mesmo ano, reiterada por outra de 1761, ordenava que fossem criadas vilas nas oito freguesias (paróquias) existentes, entregando-se sua administração a autoridades locais. Ficaria a cargo das “pessoas mais consideráveis” de cada freguesia, mediante votação, escolher a sede da vila. Em 8 de maio de 1762, nosso primeiro governador deixou a novel cidade de Oeiras, erigida à condição de capital, para a aventura de percorrer o Piauí de um extremo a outro. Acompanhavam-no o conselheiro Francisco Marcelino de Gouvea, membro do Conselho Ultramarino de Portugal, o desembargador ouvidor-geral Luiz José Duarte Freire, o padre capelão José Antonio de Freitas e vários militares.

NOMES NOBRES

Por ordem taxativa do rei, todas as vilas teriam que desprezar os “nomes bárbaros” que ostentavam para receberem “nomes das vilas mais notáveis deste reino”. A mudança já começara no ano anterior pela própria denominação da capital: era Mocha e passara a ser Oeiras. Dela não escapara nem o nome da capitania, trocado por São José do Piauí, em homenagem ao rei dom José I.

AS SEIS NOVAS VILAS

Enfrentando as primeiras 120 léguas da jornada, Caldas marchou para o extremo sul. Aí instalou as vilas de Nossa Senhora do Livramento do Parnaguá na Freguesia do mesmo nome (3 de junho) e de Jerumenha do Piauí, na Freguesia de Santo Antonio do Gurgueia (22 de junho). Retornando a Oeiras, e após merecido descanso, rumou para o norte, aí instalando as vilas de Campo Maior na Freguesia de Santo Antonio do Surubim (8 de agosto), São João da Parnaíba, na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca (26 de agosto) e Marvão do Piauí, na Freguesia de Nossa Senhora do Desterro do Rancho dos Patos (12 de setembro). Valença do Piauí, instalada na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição dos Aroazes (18 de setembro), seria a última. Jerumenha, Campo Maior, Marvão e Valença eram vilas de Portugal.

Como se vê, instalou apenas seis. E em duas deixou de ser cumprida a ordem real no tocante à substituição de “nomes bárbaros: Nossa Senhora do Livramento do Parnaguá (sul) manteve a mesma denominação e São João da Parnaíba (norte) ganhou nome de componente bárbaro ou autóctone – Parnaíba. Outra singularidade: por votação prévia das “pessoas mais consideráveis”, em duas freguesias não seria estabelecida a vila na igreja matriz (sede): a de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca e a de Nossa Senhora da Conceição dos Aroazes, instaladas nos lugares então chamados de Porto dos Barcos (o mesmo Porto das Barcas) e Catinguinha, com os nomes de São João da Parnaíba e Valença do Piauí, respectivamente.

A VEZ DE PARNAÍBA

Antes de instalar a Vila de São João da Parnaíba, Caldas presidiu reunião na igreja matriz de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca, em 18 de agosto de 1762, com a presença de numerosos moradores da freguesia, na qual seriam tomadas duas importantes decisões: l. por maioria de votos, a vila não seria instalada no arraial de Piracuruca, sede da freguesia, e sim no litoral, precisamente “no lugar a que chamam dos Barcos, junto ao Igaraçu, que é braço do rio Parnaíba”; 2. Para isso, vários moradores assinaram documento pelo qual se obrigaram a construir 59 casas no local, dentro de um ano. Contudo, ao chegar a comitiva oficial ao litoral, nova e incompreensível decisão: embora instalada a vila no atual Porto das Barcas, em 26 de agosto, “se assentou, outrossim, que em todo ele, o lugar a que chamam de A Testa Branca era mais própria situação para o estabelecimento da vila”. Porém, como nele “se não acha casa alguma”, levantou-se o pelourinho no Porto das Barcas mesmo, junto à Capela de Nossa Senhora de Nazareth, em solenidade marcada por vibrantes vivas ao Rei, por três vezes bradados a plenos pulmões.

Habilidoso político, Caldas deixou a projetada mudança para o sítio da Testa Branca “para depois que se tiverem feito alguma parte das casas” prometidas pelos moradores. Uma vez cumprida essa condição, aí, sim, desde logo determinou que a Câmara fizesse a mudança, “independente de requerimento algum”, o que jamais ocorreu. Já se vê que a história não está sendo corretamente contada.

PRIMEIRAS AUTORIDADES

Para terem exercício até o final de 1762, na ocasião foram empossados o juiz ordinário e de órfãos Diogo Alves Ferreira, os vereadores Domingos Barroso e José da Costa de Oliveira e o procurador-tesoureiro Manoel de Sousa Guimarães. E para 1763 e 1764, dois seriam os juízes ordinários e de órfãos (João da Costa de Oliveira e Francisco Freire dos Reis), quatro os vereadores (João Lopes Castelo Branco, Manoel Ferreira da Costa, João de Barros de Oliveira e João Fernandes Rodrigues de Queirós) e dois os procuradores-tesoureiros (José Alves Viana e Antonio Gomes da Costa), também desde logo escolhidos.

O PORTO DAS BARCAS

Se à época não havia “casa alguma” na Testa Branca, o mesmo não se pode dizer do Porto das Barcas. De fato, segundo certidão expedida pelo escrivão Manoel Francisco Ribeiro, havia nele “três casas, duas em que moram José Pinheiro e Apolinário Godinho, e outra em que se acham alguns escravos de Luiz Carlos Pereira de Abreu Bacelar, o qual habita nela quando vem ao dito sítio, onde também há uma Capela de Nossa Senhora de Nazareth pertencente à testamentaria do defunto José de Abreu Bacelar”. Além disso, havia “cinco oficinas cobertas de telha, em que se fabricam as carnes e couraria que recebem naquele porto os ditos barcos, dos quais pertence uma a Diogo Alves Ferreira, da mesma freguesia, e as quatro são de pessoas moradoras em Pernambuco.”

Passados 247 anos da fundação da Vila de São da Parnaíba, naquele glorioso 26 de agosto de 1762 (esdrúxula e incompreensivelmente, não se comemora a data), lá está, impávido, o Porto das Barcas. Gigantescos prédios que emolduram a paisagem do Igaraçu abrigaram, outrora, efervescentes indústrias, depósitos, oficinas. E ousadias empresariais sem conta. Construídos em épocas que desconheciam o concreto armado, valendo-se apenas de pedra, cal e óleo de baleia, permanecem firmes, no entanto, à ação deletéria dos tempos. E como monumentos vivos e testemunhas oculares da história, estão a preservar a memória e a grandeza da heróica Parnaíba e o engenho, arte e suor de sua gente.

* (Do livro Os Municípios do Piauí Colonial, do autor)

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