quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Em torno de Mário Faustino e Maurice Blanchot

Mário Faustino.


deixa
que a voz se cale e sinta-se fluente.
Max Martins

Enquanto existiu, Mário Faustino foi inteiramente dedicado à vivência literária. Ativo, se lançou na literatura em um vôo sem volta. Desde muito cedo, Mário estabelece com a escrita literária uma rede de investigações tendo a poesia e a crítica como zonas de maior atenção; navega de um espaço a outro hidratando-se na intensidade de cada acontecimento; mergulha na leitura e no estudo, engendrando bons encontros, entorno de uma pequena comunidade, com Benedito Nunes, Francisco Paulo Mendes, Haroldo Maranhão, com os quais, entre muitas trocas, lança-se em inquietas movimentações pela busca do espaço literário. E nessa direção, Mário, sempre adiante, enreda-se, num verdadeiro percurso nômade: da província à metrópole, atravessando o estrangeiro, movimento inteiramente fértil no conhecimento de escritas outras, ingressando [nos anos cinqüenta] numa intensa produção literária, sobretudo no período do Jornal do Brasil, no qual dirigiu a página Poesia–Experiência [Lilia S. Chaves: Mário Faustino - uma biografia]. Essa sua atividade, pela sua íntima relação com a literatura, se dobra em uma verdadeira pulsação desejosa tangenciada por rigorosas leituras de Pound, Mallarmé, Rilke, Baudelaire, Crane, mas a um só tempo redobrado numa produção própria, intensa, erguida sob a égide de uma extraordinária potência crítica, sobre a qual a sua escrita trafega – sob o signo de "O Homem e Sua Hora"; "Poesia Experiência" – fabricando novos enunciados para a literatura: a imagem de uma nova sintaxe; o exercício de uma critica criativa. Com efeito, Mário Faustino é, na literatura brasileira, um caso de singularidade, uma escrita que persevera, ora pela sua força poética ora pela potência crítica, numa miríade de interpretações que, pela sua velocidade, desce aos abismos da questão literária para perceber os movimentos que se efetuam na experiência do escrever, sobremaneira nas escritas mais exigentes. Não se sai imune dessa experiência. Portanto, não há nada na escrita de Mario Faustino que não esteja intimamente ligado a um Combate pela literatura. O combate que nada tem a ver com guerra. A guerra é somente o combate-contra, uma vontade de destruição [Gilles Deleuze: Crítica e Clínica]. O combate em Mário é, ao contrário, uma poderosa potencia criativa, pois segue na direção das aberturas e das fendas que fazem respirar a criação literária. Nesse combate a sua escritura se enreda em uma esfera que se movimenta sempre na ordem do positivo, consentindo à escrita o poder invariável do afirmativo, na busca incessante por significados outros. Ao percorrermos os seus textos somos fatalmente atraídos por esse Sim: devorados pela potência do que isso representa. Tal como Mário Faustino, Maurice Blanchot se iniciou na escrita pelos jornais franceses, escrevendo inicialmente sobre política, depois e todo o sempre sobre a questão literária. Recuado, sempre freqüentou pequenos ciclos, de Levinas; Dyonis Mascolo, Marguerite Duras e Robert Antelme; depois George Bataille e Maurice Nadeau. Blanchot percorreu na literatura um diverso de experiências, inclusive a da morte: "A morte seria, pois, a indigência que devemos remediar, a pobreza essencial que se assemelha a deus e que só é assustadora pelo desamparo que a separa de nós. Sustentar, amoldar o nosso não-ser, eis a tarefa. Devemos ser os artífices e os poetas da nossa morte". [O Espaço Literário]. Nessa perspectiva, para Blanchot, a morte está intimamente ligada à vida, a uma decisão que não nos cabe recuar, mas tão somente aceitar, acentuar, pois ela é justamente o movimento ligeiro que dignifica a vida na sua perpétua condição de passagem. É nesse curso que vai erigindo sua escritura, livro a livro, lançando-se a outras experiências de escritura. Em L'Instant de ma Mort pensa a morte como falha, como o alívio que se perpetua na impossibilidade de morrer; em A Literatura e o Direito à Morte tece sua concepção de linguagem e escrita a partir de Hegel via Kojève, na qual a nomeação é impossível, cabendo ao autor tão somente o direito à morte em favor do surgimento da escrita. Para Blanchot, escrever começa com o olhar de Orfeu. Esse olhar é o movimento que rompe com o destino na decisão inspirada e despreocupada de alcançar o seu próprio canto. Mas, para alcançar a potência do Canto, Orfeu necessitou da potência da arte, isso quer dizer que somente se escreve quando se atinge esse espaço aberto pelo seu próprio movimento. Da sua escrita dilata um estranho pensamento que encontramos e reencontramos num infindável redizer. Uma leitura atenta da obra de Blanchot nos mostrará que, mesmo tratando de numerosos e diferentes autores, o que ele nos diz é quase sempre o 'mesmo' [no sentido do Eterno Retorno Nietzschiano]: a literatura como espaço de exigência, no qual a obra continuamente a se reinventar, porque "é preciso dizer uma só coisa e não dizer nada mais do que ela, pois o escritor é aquele que persiste em sua obsessão, aquele que só conhece uma única arte" [Espaço Literário]. A sua escrita é na verdade o eco de uma mesma fala, uma voz perdida que circunda o centro da questão literária. Blanchot escreve e cita como quem persegue o não-familiar. Há uma sensível semelhança entre as personagens das suas narrativas e os escritores que alimentam sua crítica. Todos parecem buscar o não-encontrável, todos mergulhados no segredo que constitui a potência da escritura. Blanchot fala da obra literária do dentro, malogra dizer esse dentro, mas persiste redizendo incessantemente a obra como um escrever sem controle que se desmancha no lado de fora onde a escrita se espraia em um movimento de eterno recomeço. Na escrita de Maurice Blanchot o pensamento é uma multiplicidade, sempre em transformação, em eterno devir; na sua escrita a linguagem se revela como intensidade, aquela cuja grande variedade de fluxos nos permite perceber o horizonte de uma escrita outra, na qual tudo se atravessa: o estilo, a critica, o pensamento; um engendrando o outro, numa velocidade que fratura as fronteiras da literatura e alcança o limiar de um saber nômade, sem ponto de partida ou ponto de chegada, por fora dos códigos e do significado. A escrita de Blanchot age silenciosa e encontra no sujeito a decisão de não-ser; consiste no esforço trágico de convocar o ausente, para tornar real sua presença, fora dela e do mundo, para presentificá-la em sua realidade de escritura. Mário Faustino por circunstâncias outras também teve uma estreita proximidade com a morte, uma proximidade além de si, mas sempre à espreita, como uma ameaça que aos pouco se efetua nas dobras da sua escrita, sinto que o mês presente me assassina [O Homem e Sua Hora]; uma experiência travada na solidão do escrever, no desdobrar da obra. Maurice Blanchot antecede, em matéria de escrita, Mário Faustino em algumas décadas. Quando Mário chegou a Belém [em 1941] Blanchot começava a inquietar com seu Thomas o Obscuro, se lançado em seu projeto de escrita. Mas onde então se encontram essas duas figuras. Não se encontram. Não se comunicam. O canal de comunicação de um e de outro está atravessado por outras linhas de pensamento e conectado em outras constelações. Blanchot submerso nas suas obsessões sobre a escrita como totalidade da obra e nas suas investigações sobre o espaço literário. Na outra margem, Mário embarcando para os EUA, para o estudo, o exílio e as pesquisa, a fim de alcançar um método eficiente para pensar a literatura. Mário não vai disperso, leva consigo algumas pistas arrancadas de pesquisa aleatórias e das conversas com Benedito Nunes e outros que interavam o seu ativo ciclo de leituras. Desses ciclos traz entre muitos o nome de Pound e Croce. Nessa esfera, Mário mergulha no encalço de Pound e dele extrai o alicerce para formação do seu pensamento crítico e de sua linguagem poética. O método de Pound consiste no exame cuidadoso e direto do texto, no contínuo deslocamento aos textos do passado, no olhar veloz aos textos do presente e na argumentação centrada e respaldada pelo texto. Com efeito, numa intensa zona de multiplicidade, Mario conhece a obra de T.S. Eliot, Dylan Thomas, Cummings e muitos outros. De volta a Belém, em 1952, conhece o poeta americano Robert Stock que reitera alguma de suas posições e renova seu acervo com leituras e traduções de Keats, Blake, Hopkinins, Auden [Lilia S. Chaves: Mário Faustino - uma biografia]. Mas e Blanchot? Mário Faustino não leu Blanchot e é provável que nem soubesse da sua existência. Mas onde se comunicam? Onde se abre o encontro? O encontro entre Faustino e Blanchot se abre nas dobras de um desencontro, nos corredores de uma comunidade de distantes, tal como nos fala Jean Luc Nancy: "Já houve entre nós a partilha de um comum que não apenas a partilha, mas que ao partilhar faz existir e toca a própria existência no que essa é exposição ao seu próprio limite. É isso que nos faz "nós", nos separando e nos aproximando, criando proximidade por distanciamento na indecisão maior na qual se mantém esse sujeito coletivo ou plural, condenado (mas é sua grandeza), a não encontrar sua própria voz" [Jean Luc Nancy: La communauté affrontée]. Com efeito, a comunidade talvez tenha se tornado "a comunidade daqueles que não têm comunidade", como já dizia Bataille; a Comunidade 'inconfessável', como diz Maurice Blanchot, apostando assim em alguma comunidade 'negativa', feita do desencontro, atada pela impossibilidade de encontrar, ligada pela distância. Nessa esfera, não há lugar nem tempo fixo para o encontro de Mário e Blanchot, tampouco a necessidade de um encontrar. Mas o encontro acontece. Acontece e se cruza pela leitura da obra dos autores que lhes foram comuns e, sobretudo por valerem-se do recurso do diálogo para encontrar e pensar esses autores. O diálogo acontece e se documenta pela escrita na obra de cada um. Em A Conversa Infinita, de Blanchot, e Em Diálogos de Oficina, de Mário. Blanchot e Faustino mantiveram-se em diálogo constante com a escrita literária, canônica e não canônica, em autores da Margem e do Centro da Esfera; pensar esses autores para eles era parte de uma compreensão indispensável do espaço literário. Mário, em seus Diálogos de Oficina, logo nas primeiras linhas, assim o inicia: dois poetas trabalham na oficina que compartilham. Nas horas de trégua, quando guardam fatigados o silêncio, discutem seu ofício. Não pretendem dizer-se novidade, nem um ao outro expor-se à admiração; querem somente esclarecer, fixar e trocar experiências. Mário Faustino: Diálogos de Oficina]. O diálogo se estende por muitos dias; por ele passam questões cruciais do pensamento literário. Por vezes o diálogo "esquece" Pound e seu método ideogramático e naufraga no espaço aberto do próprio diálogo; não há nada a advertir, não há nada a enunciar, só o diálogo em sua velocidade de quase ficção. Por vezes silencia, não fala e não define, apenas silencia. Vai aos poucos retomando fôlego e recomeça num movimento de eterno recomeço. Fala de Pound, Rilke, Joyce, Launtréamont sobre a escrita, o escrever, e o pensamento. Mário encontra nas entranhas desses autores o eco de um possível, de uma abertura, e nele se enreda em uma longa. E a assim fez Maurice Blanchot, mas de uma outra maneira, pois a sua voz parece precária já é quase inaudível, mas ao contrario de se encerrar, resiste, diz a sua impossibilidade, estende-se em uma Conversa Infinita: Nas primeiras linhas dessa conversa nos diz: Aqui, no mundo simples da fala e da necessidade, as palavras são votadas ao essencial, atraídas unicamente pelo essencial e pelo monótono, mas também demasiado atentas ao que é preciso dizer para evitar formulações brutais que poriam [Maurice Blanchot: A Conversa infinita, A Palavra Plural]. Nessa conversa, valendo-se de uma sofistica capacidade de inventiva, Blanchot combate na literatura as suas idéias restritivas - de Deus, do Sujeito, da Verdade - visando uma escrita inteiramente ''fora do discurso, fora da linguagem'', fora de tudo que remeta a uma cultura da identidade, em favor de uma escrita virada, ao devir, ao crepúsculo dos acontecimentos.

Biografia

BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita (VL. 1). São Paulo: Escuta, 2001.

CHAVES, Lilia Silvestre. Mário Faustino: Uma Biografia. Belém: IAP, 2004.

DELEUZE, Gilles. Critica e Clinica. São Paulo: Editora 34, 1997.

FAUSTINO, Mário. O Homem e Sua Hora. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

FAUSTINO, Mário. Poesia Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1976.

NUNES, Benedito. Dois Ensaios e Duas Lembranças. Belém: Secult / Unama, 2000.

NANCY, Jean Luc. La Communauté Affrontée. Paris: Galilée, 2001.

Nilson Oliveira é editor da revista Polichinello, autor de Apenas Blanchot (org), [Pazulin, 2008]; A Outra Morte de Haroldo Maranhão [IAP, 2006]

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