Rogério Newton, Paulo Machado e ...
Foto sem crédito.
Quando tinha dez anos, O. G. Rêgo de Carvalho escreveu na escola uma redação, publicada n’O Fanal, jornal editado por seu avô: era sobre a feira. O grupo escolar foi o mesmo em que estudei, três décadas depois, não mais no sobrado. Mandaram construir um prédio, na Praça do Perdão, e o pintaram de amarelo. Ainda hoje é amarelo. Outro dia, voltei a Oeiras, passei na calçada, encontrei a porta aberta. Segurando a respiração, entrei. Não havia ninguém. No meio do silêncio, na sala de paredes altas, fiquei quieto, ouvindo o quê, meu Deus? O vigia me tirou do devaneio e me viu sair, sem nada entender.
A feira ficava perto. Foi meu pai quem me levou pela primeira vez. Uma multidão de animais e de gente e de coisas que eu nunca tinha visto. Uma algazarra, um colorido, um sol quente... Aprendi a gostar da feira como aprendi a gostar de meu pai: sem entender por quê. Ele comprava e deixava as coisas no comércio do professor Possidônio Queiroz, único negociante do mercado - e da cidade - que vendia livros. Inda hoje vou à feira. Toda semana. É a minha missa. No Mafuá, palavra negra como o carvão vendido perto da ponte de ferro, o melhor da cidade, e o mais barato. Não me pergunte por que escolhi aquele mercado. Só lá, e não em outro, encontro araticum, no tempo; o gengibre e o açafrão; a goma fresca da casa de farinha de Antônio Divino; folhas de couve para o suco verde; macaxeira não falta, sempre boa; milho, de irrigação ou não; frutas do mato como pitomba e umbu; no tempo da safra, mangas e cajus, que nem levo, pois tenho dois pés em casa botando, fora os presentes que recebo. E não é só isso, pois ninguém vai à feira só pra comprar. Tem os tipos humanos, como o vendedor de cibazol, os bêbados, os mendigos, uma pá de gente. Os amigos que a gente encontra pro dedo de prosa. O carro de som anunciando pomada de copaíba. Às vezes aparece um cego tocando pandeiro e cantando versos endiabrados. E mais... muito mais coisas tem a feira...
Tem até arte! Não só a natural, que se faz inconscientemente, só pelo movimento da vida, da marca suja da vida. Tô falando da arte feita com intencionalidade. É que tem ali, espremido entre dois pontos mais ou menos grandes, um quartinho que, se muito tiver, mede três por quatro metros, onde Dona Zefinha instalou o Armarinho São Francisco, há trinta e cinco anos. Antes mesmo da morte dela, seu filho, o artista plástico Cícero Manoel, deu continuidade ao comércio de miudezas usadas pelas costureiras, mas com uma feliz inovação: sem desmontar o armarinho, transformou-o no Espaço Cultural São Francisco, o único, que eu saiba, a funcionar num mercado popular. Pequenos objetos, que Cícero foi recolhendo aqui e ali, misturam-se aos avisos escritos nas caixinhas de papelão - “cobrem-se botões”, “prega-se ilhós” - e aos artigos expostos à venda, que variam de rolos de cordão de rede, armadilhas para ratos a brinquedos para crianças. Expostos despretensiosamente no exíguo espaço, na estante única ou em cima do armário, metamorfoseiam-se naquilo que são: singelos exemplares de decoração ou arte, que o olhar desatento nem sempre apreende como tal.
Há uma exposição permanente de desenhos, pinturas e fotografias, espalhados na única parede livre. Quase todo mês acontece de Cícero organizar mostra de artes plásticas. Até ontem, por exemplo, quem expôs foi José Maria, que começou a pintar depois dos oitenta anos. Vez em quando, há lançamento de livro ou outra arruaça, em que se serve garapa de cana e pastel, feitos ali perto. O armário de madeira, abarrotado de livros, é o único móvel da Biblioteca Dona Zefinha, que tem entre suas obras a primeira edição de O Homem e Sua Hora, de Mário Faustino. Em quatro anos de existência, o espaço Cultural São Francisco amealhou, pelo esforço de Cícero, considerável número de obras de artistas plásticos de vários lugares do Brasil. Ele agora divide parte desse acervo com o público, através da exposição As Cores de Dezembro, cuja visitação começa hoje e vai até janeiro: desenhos e gravuras em metal, xilo e litografia de mais de trinta criadores, entre os quais os piauienses Nonato Oliveira, Albert Piauí, Liz Medeiros, Dora Parentes, Davi Cury e o inesquecível Fernando Costa. E outros como Carlos Scliar, Glauco Rodrigues, Antonio Maia, segundo ele, “fundamentais para a arte brasileira”.
Do asfalto, do nojo, da memória, ia dizendo da miséria, no coração do Mafuá, brota, insólita, uma flor para Teresina, que nem sempre ama a arte como devia. O Espaço Cultural São Francisco – perdoem a comparação pífia – é um oásis no deserto hostil da cidade, no âmago da poética, prosaica, efêmera, eterna feira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário