Marcus Vinícius Câmara Brasileiro1
Resumo: Este ensaio foi estruturado à partir da análise de uma outra dimensão intelectual de Torquato Neto, talvez a menos conhecida: sua atuação como jornalista. Entre 1971 e 1972, Torquato Neto manteve uma coluna, chamada GELEIA GERAL, no Jornal a Última Hora, do Rio de Janeiro. Os temas - como a forma - dessas colunas são muito variados, mas alguns são recorrentes: cinema é um deles. Este artigo se concentrar somente nas questões sobre cinema e sua articulação como mecanismo de combate ao autoritarismo.
Palavras-chave: Cinema, contra-cultura, tropicalismo, subjetividade
Abstract: This essay has been based off of analysis from an intellectual dimension of Torquato Neto which very few people are aware of: his work as a journalist. Between 1971 and 1972, Torquato Neto wrote a column called GELEIA GERAL, in the journal Última Hora, in Rio de Janeiro. The themes and the forms of these columns are varied, but there are some which reappear more then others through the work, cinema is one of them. This article is concerned specifically on the questions of cinema and its articulation as a mechanism of rebellion against authoritarianism.
Keywords: Cinema, counterculture, tropicalism, subjectivity
1. Nota preliminar
Nos anos que se seguiram a eleição de João Goulart (1960) até meados de 1967, o tom do discurso sobre a cultura brasileira girava em torno da ideia de que ela deveria estar a serviço da transformação da sociedade. Arte e política, nesse sentido, não deveriam apresentar uma fronteira nítida, muito pelo contrário: esperava-se que essas duas dimensões das práticas culturais se unissem em função de ideais comuns (Napolitano, 2004). Havia, portanto, uma necessidade de criar os mecanismos para se colocar a cultura à serviço dessa transformação que se buscava implementar na sociedade brasileira.
A promoção da emancipação nacional, tarefa principal do artista engajado, deveria dar-se, do ponto de vista estético, a partir da conversão do artista aos novos valores e procedimentos que deveriam in-formara sua produção. As exigências postas impunham, portanto, a necessidade de sacrifício do “deleite estético” e da expressão pessoal - todos atributos muito caros a Torquato Neto - em função do uso da obra de arte como instrumento de uma “pedagogia” política das massas. Nesta discussão entre a valorização da arte como Forma e/ou Conteúdo estabelece-se o dilema histórico da comunicação artística. Segundo defensores do engajamento artístico, como já foi dito antes, seria papel da arte facilitar a comunicação com as massas, mesmo com prejuízo da expressão artística. A intenção seria, portanto, fazer da arte uma estratégia que pudesse abrir canais de mobilização que não passassem necessariamente pela dimensão racional, mas pela dimensão emocional do indivíduo. Seriam, portanto, três os procedimentos básicos que deveriam ser lançados pelo artista engajado: 1) adaptação à fala do povo; 2) submissão aos imperativos ideológicos populares; 3) entendimento da linguagem como meio, não como fim. (Napolitano, 2004, p. 39).
Em seu trabalho Tropicalia, Counterculture, and the Diasporic Imagination in Brazil, Christopher Dunn (2001) levanta uma questão interessante que ajuda a compreender a natureza da intervenção política que a Tropicália estava interessada em realizar, em confronto direto com a “cartilha” da arte engajada. Dunn afirma que devido à assimetria da distribuição do capital econômico e cultural no mundo, uma música que seja estilística e discursivamente afirmadora do local e do nacional, talvez, de fato, possa promover solidariedade e fomentar atitudes de mudanças sociais e políticas. Entretanto, continua Dunn, tais práticas musicais não são “por definição” mais eficazes do que aquelas informadas por culturas exógenas ou transnacionais. Desta maneira, a apropriação de formas exógenas talvez servisse como marca de distinção de classe e de um cosmopolitismo presunçoso, mas também pudesse servir “to critique reified or prescriptive traditions and identities that artists and audiences may regard as culturally and politically confining” (Dunn, 2001, p. 73).
Será exatamente contra esse confinamento cultural que o Tropicalismo irá se insurgir. Nesse sentido, ele é, do ponto de vista ideológico, uma crise do programa estético da arte engajada. Os tropicalistas, descrentes de um nacionalismo ingênuo e arrogante, buscariam expor e assumir todos os elementos e “relíquias” que fariam parte do complexo caldeirão de paradoxos culturais da sociedade brasileira. Tal gesto estético-discursivo já tinha sido executado pelos Modernistas de 22, pela Bossa Nova, mas, no Tropicalismo, ganhou as cores e o tom do momento político dos anos 60 e 70.
Conscientes do substrato ideológico que subjaz em todo discurso, via-se com desconfiança qualquer modelo político ou cultural proposto como capaz de superar a exploração do homem pelo homem. Com esse procedimento, os tropicalistas traziam para o cenário no qual se discutiam essa questões um outro elemento fundamental: a própria linguagem. O desvio de um linguagem linear, comunicativa e de teor “pedagógico”, para um perfomance debochada, crítica e irônica tinha a sua fundação no comportamento rebelde e agressivo da geração dos anos 60. A ação na/pela linguagem dará o tom estético e discursivo da Tropicália.
Diante das questões de desigualdade social, do enfraquecimento das instituições democráticas, a pergunta colocada quase como um desafio aos artistas e intelectuais seria a seguinte: De que maneira, dentro da especificidade de seus trabalhos, esses “atores sociais”, para usar uma linguagem da época, poderiam colaborar para a transformação do país? A resposta a essa pergunta, performativamente executada por meio do próprio fazer artístico e intelectual, seria polarizada. De um lado, colocava-se a necessidade de produção de uma “mensagem” que conduzisse o interlocutor a um sentido de comunidade, de pertencimento e de responsabilidade social. Que atitude expressivo-estética, portanto, deveria in-formartal atitude política? Deveria ser uma expressão que, mesmo com todos os subterfúgios retóricos para driblar a censura do regime militar, pudesse sinalizar, de forma clara, tal projeto político. Este comprometimento da produção artística gerou alguns produtos que resistiram ao tempo. Mas é certo também que muito da produção dessa época tem servido mais como um baú arqueológico e como um registro de um dos momentos mais significativos da história recente brasileira.
2. Cinema como experimento radical de linguagem
A obra de Torquato Neto representa, portanto, uma síntese de tendências díspares, por isso mesmo a dificuldade de identificar uma matriz estética. A pluralidade de temas e estilos é uma das características fundamentais do poeta e do jornalista (Andrade, 2002). Apesar dessa pluralidade presente na superfície da obra de Torquato Neto, implicitamente, é possível vislumbrar o drama da fragmentação do sujeito lírico e a transformação da palavra em instrumento de resistência. Tal resistência retoma a subjetividade do herói rebelde e sua performatividade expõe um sujeito na contramão dos valores de seu tempo, à margem, um “anjo maldito”, como Torquato passou para a historiografia poético-musical brasileira. A ampliação dessa subjetividade pode ser encontrada a partir da análise da coluna que Torquato Neto publicou entre 1971 e 1972, chamada Geléia Geral, no Jornal a Última Hora, do Rio de Janeiro. A coletânea destas colunas apareceu no volume Torquatália: Geléia Geral, organizado por Paulo Roberto Pires e publicado pela editora Rocco em 2004.
Como o próprio nome sugere, em Geléia Geral cabia tudo: desde textos opinativos sobre as mais variadas manifestações artísticas da época, seus debates e polêmicas, até notas e anúncios dos eventos culturais, bem como poemas, cartas e depoimentos de amigos ou personalidades, etc. Tiradas rápidas, soluções sintéticas (quase aforísticas), combinações inusitadas de palavras, críticas mordazes, e momentos de lirismo contido, formam o repertório das estratégias discursivas de Torquato Neto. Em relação às questões sobre cinema que pontuam vários momentos desta coluna, algumas preocupações despontam: o papel ético e estético do cinema e os rumos do cinema brasileiro depois do legado do Cinema Novo.
Nos posicionamentos de Torquato Neto ficam revelados duas tendências dentro das produções cinematográficas de esquerda. A primeira estaria interessada no resgate de eventos importantes da história do Brasil. Os realizadores desta tendência seriam os herdeiros do Cinema Novo, que segundo Torquato, seria mais comercial e de linguagem mais acessível, em busca de uma comunicação com o público (comparando-se, é claro, com o Cinema Marginal). A ficção histórica, base de uma boa parte da produção da época, buscaria a construção da identidade brasileira que estaria perdida no inconsciente coletivo da nação. A segunda tendência – o cinema experimental – colocaria sua ênfase sobre a dimensão estética e menos na ética (esta seria uma espécie de consequência do desenvolvimento de uma nova sensibilidade e de uma nova hermenêutica). Nesse sentido, o documentário da realidade funcionaria como prática fundamental para a articulação desse projeto. Por este motivo, Torquato escreveria:
[...] estou achando filmes históricos, todos, o fim da picada. Fico pensando o que significa exatamente fazer esses filmes no prezado momento do cinema, e muito principalmente aqui entre nós e apesar de todas as “fantásticas” intenções de quem está nessa. [sábado, 4 de setembro de 1971]. (Neto, 217)
A preocupação com cinema não é dado isolado e específico em Torquato Neto. Segundo Branco (2005), “entre o final da década de sessenta e 1975, num circuito semi-profissional, foram produzidos no Brasil, 681 filmes por 237 realizadores em vinte e uma cidades” (Branco, 2005, p. 187). O que pode chamar atenção neste dado é o fato de que boa parte desses realizadores eram artistas plásticos – como Hélio Oiticica e Lygia Pape – “e uma das marcas distintivas desta produção era a multiplicidade de propostas estéticas” (Branco, 2005, p. 187). A necessidade de sobrevivência destas experiências dentro de um regime autoritário e com forte censura daria conta também do caráter fragmentário dessas produções. Torquato se engajaria neste ‘florescer’ de um cinema “marginal” e faria de sua coluna a tribuna para a divulgação e o estímulo do cinema experimental2, como podemos perceber na passagem seguinte:
[...] Pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora: fotografe, faça seu arquivo de filminhos, documente tudo o que pintar, invente, guarde. Mostre. Isso é possível. Olhe e guarde o que viu, curta essa de olhar com o dedo no disparo: saia por aí com uma câmera na mão, fotografe, guarde tudo, curta, documente. Vamos enriquecer mais a indústria fotográfica. Mas pelo menos assim, amizade: documentando, fotografando, filmando os monstros que pintam, pintando sempre por aí com o olho em punho, a câmera pintando na paisagem geral brasileira. [terça-feira, 19 de outubro de 1971]. (Neto, p. 277)
Mesmo que a imagem de Torquato Neto tenha ficado para sempre associada à poesia, mais do que às outras manifestações artísticas a que se dedicou (inclusive à realização de alguns curtas-metragens), será por intermédio dessas intervenções no debate sobre o cinema brasileiro que a coluna Geléia Geral se tornará “deliberadamente uma trincheira do chamado ‘cinema marginal’, enquanto em outro polo, Glauber Rocha catalisaria em torno de si as opiniões cinemanovistas” (Branco, 2005, p. 190). O testemunho de sua transição de interesses pode ser percebido na coluna do dia 19 de outubro de 1971, na qual se lê:
Escrever não vale quase nada para as transas difíceis desse tempo, amizade. Palavras são poliedros de faces infinitas e a coisa é transparente – a luz de cada face distorce a transa original, dá todos os sentidos de uma vez, não é suficientemente clara, nunca. Nem eficaz, é óbvio. Depende apenas de transas com a imagem, chega de metáforas, queremos a imagem-imagem sem mais reticências, verdadeira. A imagem é mais forte, não brinque em serviço, brinque. Não brinque de esconder com seu olho: veja e fotografe, filme, curta, guarde. [terça-feira, 19 de outubro de 1971]. (Neto, p. 278)
É exatamente sobre a dimensão da ‘política da estética’ que Torquato irá atuar. E no caso especificamente da política cinematográfica, sua posição deixa entrever uma necessidade de trabalhar com os elementos da realidade mais imediata, sem a necessidade da “metáfora”, na medida em que pelas brechas da ‘realidade’ seria possível fotografar, filmar, capturar um outro tipo de beleza. A paisagem brasileira não sustentaria o lirismo de um cinema teleológico. Torquato interpela seus leitores (e supostos realizadores) a:
[...] Organizar arquivos da imagem brasileira desses tempos, cada qual guardando seus filminhos, até que o filme todo esteja pronto. Planos gerais, retratos da paisagem geral, arquivos vivos, as fachadas, os beijos, punhaladas: documentar tudo, podes crer: é isso. [terça-feira, 19 de outubro de 1971]. (Neto, p.279)
Este seria, portanto, um dos principais desafios colocados aos jovens cineastas: não perder a autonomia da criação artística e, se necessário, confrontar-se com “segmentos do Cinema Novo que àquela altura já estavam desembarcando em cargos e verbas oficiais”. (Branco, 184). As diferenças entre Torquato Neto e o Cinema Novo transformou-se numa das frentes de batalha de Torquato, logo depois do seu afastamento do ‘Grupo Baiano’. Geléia Geral dará forma aos princípios éticos e estéticos das “experiências culturais marginais, das vozes alternativas, da palavra subterrânea” (Branco, 198). Torquato passou a se relacionar com pessoas (Sganzerla, Brestane, Ivan Cardoso, Luiz Otávio Pimentel) que, na sua visão, “representavam o lado urbano e universalista do cinema brasileiro” (Branco, 2005, p. 198).
A questão do experimentalismo da linguagem no cinema que se pretende de vanguarda é constantemente discutida na coluna. As intenções dos realizadores “cinemanovistas”, na percepção de Torquato, teria sua base na pressuposição - também política - de que resgatando a história reprimida do Brasil, seria possível efetuar uma espécie de psicanálise do imaginário cultural brasileiro. É um gesto artístico e uma estratégia política que não combina, no seu todo, com o projeto de Torquato porque não estaria ancorado numa radicalização da linguagem e faria muitas concessões à “comunicação com o público”. Novamente, como em muitos momentos de quem estuda a cultura brasileira deste período, aparece em primeiro plano a expressão do dilema político dos artistas, pressionados a posicionarem-se em um debate que concebe a arte de formas diferentes: uma concepção mais formalista, de arte pela arte (poética vanguardista com ênfase na dimensão estética e experimental de qualquer linguagem que se pretenda artística) e uma outra concepção derivada da arte engajada (cuja poética define um lugar de submissão da estética à ética). Nestes termos, é possível colocar em contexto sua afirmação de que:
(...) Contadores de história vão afastando o cinema da barra-pesada da realidade, que a meu ver é infinitamente mais forte e educativo do que qualquer história, bem ou mal contada, dessas antigas. [sábado, 4 de setembro de 1971] (Neto, 217/218)
A divergência de Torquato não parece ser de substância, mas de meios. O Cinema Marginal seria a base da construção de um cinema mais voltado para uma prática que, colhendo seus materiais da realidade cotidiana, estaria mais em sintonia com um projeto de afirmação do cinema como obra de arte (em primeiro plano), mas também como ato de intervenção social. E a polêmica continua no seguinte tom:
(...) O melhor (atuante e tal) do que sobrou do cinema novo continua indeciso entre Deus e o diabo na terra do sol etc. A ala mais descontraída levanta superproduções e filma relatos históricos para francês ver. (...) Os herdeiros, de Cacá Diegues, Pindorama, de Arnaldo Jabor, Como era gostoso o meu francês, de Nelson Pereira dos Santos, são exemplos desse tipo de “equívoco”, cujo tiro saindo tranqüilamente pela culatra. [sábado, 4 de setembro de 1971] (Neto, 218)
Para quem olha para esses diversos posicionamentos com os olhos de hoje, o olhar crítico de Torquato deixar transparecer sua compreensão das posições antagônicas e seu modo de filiação dentro dessa dinâmica discursiva. O discurso de Torquato revela uma consciência aguda dos posicionamentos ideológicos de seu tempo, um tempo que para ele até que poderia ser chamado de “espera”, mas que somente “os trouxas e os mais burrinhos (além dos cegos) não conseguem encontrar no escuro alguma coisa luminosa como uma boa canção que não sirva apenas para fazer média com o que já foi feito, comido e prensado” (Neto, 2004, p. 224).
Em uma passagem bastante significativa da sua coluna, publicada no dia 13 de outubro de 1971, Torquato traz uma citação de Antonio Bivar, passagem de uma entrevista concedida no mesmo jornal Última Hora. O argumento básico da citação de Bivar coloca a culpa da inércia cultural que ele percebe num certo imobilismo, denominado de “uma certa preguiça”. Bivar continua seu argumento, afirmando que “de repente as pessoas não gostam mais de nada. Negam tudo. Negam o teatro, negam o cinema.” Torquato resolve rebater a esta acusação de imobilismo preguiçoso da seguinte maneira:
Certo, amizade. Mas me diga: Será no duro preguiça? Só preguiça, amizade? Que teatro amizade? Que cinema? Que preguiça? I don’t believe that. Podes crer. A transa é muito outra e “preguiça” é um apelido errado. Pode concertar. [quarta-feira, 13 de outubro de 1971]. (Neto, p.267).
A posição discursiva de Torquato coloca em cheque a definição de “preguiça” acionada aqui por Bivar, redefinindo-a. Em vez de “preguiça”, o que está em questão no argumento de Torquato, de forma subliminar, seria a palavra “resistência”. Em termos indiretos, este suposto “imobilismo preguiçoso”, na percepção de alguns, seria apenas um modo de realizar arte que não estivesse incorporada dentro do paradigma da indústria cultural da época. O projeto estético de Torquato, baseado, sob um certo ângulo, num tipo de individualismo existencialista, passaria necessariamente pela rejeição do coletivismo fácil e popularesco e exigiria do artista a fidelidade às suas próprias demandas pessoais. Nesse sentido, o ritmo da produção artística passaria pelo desejo do próprio artista, fator que por si só, apresenta seu ritmo e dinâmica próprios, fora da maquinaria massificante da indústria cultural. Ao perguntar sobre “que teatro, que cinema” – que arte, enfim, - Torquato coloca também em cheque os espaços discursivos da produção artística da época: divididos entre nacionalismos, quer em sua variante de esquerda ou de direita. Espaços estes nos quais Torquato não consegue se enquadrar.
A gestação de uma “terceira margem do rio” é complexa e leva tempo: daí a sua confusão com preguiça ou imobilismo. Esta “terceira margem do rio” passaria por um processo de gestação de uma nova epistemologia, tanto por parte do artista, como dos críticos culturais – bem como por parte da audiência, é claro. É nesta direção que podemos enquadrar a seguinte passagem:
É claro que você pode “fazer cinema” por aqui (...) experimente, é fácil demais, aperte o dedo, invente como queira, dê uma chance ao teu olho, futuque , descubra, transe em superoito. É muito quente e muito frio, só depende mesmo de você. Olhem bem, acerte o foco e dispare. Dá excelentes resultados. Dá filmes que não passam nos cinemas. Dá muita liberdade, amigo. Você gosta? Use. Abuse. [quarta-feira, 13 de outubro de 1971] (Neto, p. 267)
3. Nota “pósliminar”
Torquato simboliza uma formação discursiva presente nos anos 60/70 no contexto brasileiro (e mundial), que radicalizou – ética e esteticamente – o projeto de liberação do sujeito construído pela contra-cultura. Minha resposta sugere, portanto, que na base do projeto torquatiano encontra-se uma cosmovisão que não negociou os princípios de liberdade individual e artística. Torquato representa, nesse sentido, aqueles sujeitos que levaram às últimas consequências - por ingenuidade, fidelidade filosófica, ou em última instância por ter atingido o seu limite físico e emocional - o tipo de humanismo engendrado a partir dos anos 60. Qual a relevância, portanto, de projetos como os de “sujeitos torquatianos” hoje em dia? Sua importância encontra-se no desafio epistemológico que eles nos colocam. Suas performances são um testemunho dos limites da subjetividade humana – tanto do ponto de vista pessoal, ético e estético. Performances como as de Torquato nos interpelam a realizar uma leitura mais complexa de gestos denominados como “radicais” – no sentido de entendermos a complexa malha discursiva que articula tais gestos. E nunca foi tão importante estarmos alfabetizados para tais leituras como atualmente. “No mais, é como se diz lá no Piauí: muita galinha e pouco ovo. É o que há de novo” [sábado, 18 de setembro de 1971](Neto, p.233).
BIBLIOGRAFIA
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HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960-1970. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). 2ª.ed.São Paulo: Contexto, 2004.
NETO, Torquato. Torquatália: obra reunida de Torquato Neto. Paulo Roberto Pires (org). Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
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SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
VAZ, Toninho. Pra mim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Ed. Casa Amarela, 2005.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
WISNIK, José Miguel. Sem receitas: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.
Email: bras0064@umn.edu.
2 Torquato Neto odiava esta expressão “cinema marginal”. Ele preferia a palavra “underground”.
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