sábado, 14 de abril de 2012

Fogo interior


Toni Rodrigues

De repente, não mais que de repente (não é assim que dizem os irônicos?), eu a reencontrei.
Estava bem ali o tempo todo, mas até aquele momento eu não a vira.
por que será? Fazia parte de um plano divino?
Deus escolheria a hora certa para encontrarmos e/ou reencontrarmos a pessoa amada?
Diante de mim, como uma deusa, revi Larissa.
Fazia tanto tempo que, para mim, é como se tivesse entrado num portal mágico que me conduzisse a outra etapa de existência.
Estaria, portanto, em outra vida.
Mas não, estamos vivendo a continuidade daquilo que somos e devemos pagar pelos erros que cometemos no passado.
“O que tem feito de sua vida?”, ela perguntou.
“Trabalhado muito e... pensado em você...”, respondi.
Larissa sorriu espalhafatosamente.
Ela sempre virava a cabeça para trás e sorria espalhafatosamente, deixando-me ver o céu de sua boca linda que tantas vezes beijei.
“Pensado em mim? Por quê?”
“Porque você é a mulher de minha vida. Sempre foi. Não consigo apagar sua lembrança de minha mente. Tentei inúmeras vezes, mas, perdoe-me, não consegui.”
“Você sabe que não posso, Jorge, sou agora uma mulher casada. Tenho compromisso, filhos...”
“Sei, sei perfeitamente, não precisa ficar me torturando ainda mais.”
A acompanhante veio ao seu encontro. Se distanciara em busca de algo que perdera durante o passeio na praça da Matriz.
A torre da Igreja de São Benedito se recortava contra um céu todinho azul, entrecortado por nuvens brancas aqui e ali.
A amiga. “Ducarmo, este é Jorge, um amigo da família.”
“Muito prazer”, disse a outra, estendendo-me a mão.
Apertei com delicadeza.
“De onde se conhecem?”
“Jorge é amigo do Barão.”
Não entendi porque Larissa mentira. O Barão era um homem poderoso, tinha poucos amigos, eu certamente não era um deles.
Ducarmo ficou descrente da informação, afinal conhecia o Barão muito bem para saber que ele jamais teria um amigo nas minhas condições.
Sou o que pode se definir como trapo humano.
Vivo bêbado pelos bares e churrascarias, aproveitando cada instante para me embriagar ainda mais com o objetivo de esquecer meu passado que tanto me atormenta.
Talvez mais ainda do que a presença da mulher amada, ali, diante de mim, distante de mim.
Nas horas vagas, trabalhava como operário na fábrica de tecidos na beira do rio Parnaíba.
Nas últimas semanas, tivemos muito trabalho.
Chovera forte sobre a cidade (coisa não muito rara), com raios e trovoadas (Teresina é conhecida também como Chapada do Corisco) e todos os estabelecimentos situados na avenida Maranhão ficaram inundados.
Os empregados, todos, indistintamente, foram utilizados na difícil tarefa de remoção do maquinário, da produção em larga escala, numa tentativa de reduzir os prejuízos que foram muitos.
Eu soube (não tenho bem certeza) que o Barão é dono de parte do empreendimento em que trabalho.
Meus olhos vermelhos indicavam o estado de alcoolismo.
“Você tem certeza que está bem, Jorge?”, perguntou Larissa.
“Claro, pode ficar tranqüila”.
Ela sorriu um sorriso azedo, enlaçou o braço de Ducarmo e juntas saíram andando apressadas.
Para ela, não ficaria bem ser vista na companhia de um demente em plena praça pública.
Àquela noite, fui tomar um porre no “Cai Nágua”, ambiente dos mais devastados da capital, lugar para lisos e devassos.
Era onde se podia tomar nos braços algumas putas de péssima qualidade pelos menores preços (sempre com o risco de contrair uma doença venérea).
“Covardia. Covardia. O doutor foi morto covardemente. Enquanto isso, o governador e o chefe de polícia se empenham em tentar descobrir o incendiário. Homem bom, arrimo de família, estudou e trabalhou muito para galgar posição de destaque na sociedade... Morrer daquele jeito”.
Januário Pinga, boêmio e jornalista, lamentava a morte do advogado Francisco Santiago, assassinado há uma semana em sua própria residência.
Morrera, segundo consta, pelas mãos do indivíduo conhecido como Monstro do Poti Velho, que matara dois (talvez mais, visto que ninguém conhece seu passado no Maranhão, de onde veio), a própria mulher e um comerciante da região conhecido por Mariano da Conceição.
Flagrara os dois em pleno coito na beira do Poti e depois de matá-los embrenhou-se na mata, depois veio para a urbe em busca de alimento e terminou infiltrando-se nas residências (como um rato, durante a noite, para catar os restos de comida lançados ao lixo).
O doutor teve muito azar. Saiu à noite para urinar e, na área externa da casa, deparou-se com o homicida.
Foi esfaqueado abaixo do umbigo. Teve morte imediata.
“Covardia”, protestava Januário Pinga. “Garçom, mais uma, por bondade. E tu, Jorge Arruda, o que anda aprontando nesta vida inútil?”
“Tenho dado muito duro...”
“É, pra gastar tudo na mesa de bebida e nas camas das raparigas. Tu é um verdadeiro imbecil”, disse Januário.
O escroto não tinha nenhum comedimento.
Às vezes eu ficava puto e queria partir para a briga, mas ele já estava com a idade avançada, seria ato de loucura bater num velho, mesmo um velho odiento como Januário Pinga.
“Vá se danar, velho cretino”, levantei-me, procurando outra mesa, outra companhia.
Ele veio atrás de mim.
“Está assim porque encontrou a mulher do Barão. Estou sabendo, idiota, aliás, toda a cidade está sabendo. O Barão está sabendo e, seu eu fosse você, cuidava em me esconder no buraco mais fundo de Teresina. Todos sabem. O Barão não perdoa. Não chega a ser um Monstro do Poti Velho, mas tu é muito compenetrado e merece mesmo uma lição. O que queria, afinal, de papo com a mulher alheia?”
“Não foi papo. Foi apenas um esbarrão. Nos cumprimentamos e pronto.”
“Compenetrado. Um simples operário dando em cima da mulher do homem mais rico de Teresina. Só mesmo um infeliz como tu, Jorge, pra cair numa esparrela dessas. Cuidado, rapaz, muito cuidado. Sei que teve um caso com essa mulher, mas é coisa de antigamente, procure esquecer. Hoje ela tem outra vida, vive numa outra esfera social, bem longe do teu mundo e do espaço que tu ocupa na sociedade. Tu é um merda, Jorge Arruda, um merda, e aquela mulher é uma flor. Lembre-se disso.”
Fui para casa antes da noite terminar. No dia seguinte, domingo, fui dar um mergulho no Parnaíba.
Antes de sair, minha mãe perguntou. “Para onde vai tão cedo? Mal chegou...”
“Nadar um pouco.”
“Cuidado, filho, o rio está muito cheio.”
Fiquei pensando que de ontem para cá todo mundo me dizia para ter cuidado.
Cuidado com o Barão, cuidado com o maquinário, cuidado com a cheia do rio.
Estou cansado de ter cuidado.
Larissa ainda gosta de mim, senti pelo seu olhar.
Tive apenas a má sorte de não ter nascido em berço de ouro.
Ela optou por outro caminho.
Namoramos durante muito tempo, desde a adolescência, passando boa parte da fase adulta.
Estivemos noivos, mas de repente (não mais que de repente), ela conheceu o Barão, homem de posse, recém-chegado da capital federal, financiando todo mundo, comprando casas e terrenos, instalando-se comercialmente e chegado aos principais escalões de poder.
Larissa disse para mim que estava com o coração partido, mas precisava pensar na mãe, no pai, já velhos, cansados de tanto trabalhar e sem conseguir juntar praticamente nada.
“Preciso aceitar a proposta do Barão. Por outro lado, além de tudo, meu pai está devendo muito dinheiro a ele. Você sabe, ele tem um pequeno estabelecimento de crédito. Empresta dinheiro a juros. Papai foi entrando, entrando, ele sempre afável. O débito tornou-se impagável para nossas condições”, ela.
“Tem certeza que não tem outro jeito? Posso tentar um acordo, quem sabe negociar com ele. Tenho certeza de que encontro uma forma de saldar a dívida.”
Tentei de todas as formas demovê-las, mais depois refleti melhor e entendi que Larissa estava, de fato, querendo mudar de vida, experimentar os ares da nobreza.
Restava-me, portanto, a angústia.
Ela se dera bem no casamento. Fora morar na zona Leste, área nobre da cidade, bem longe dos pobres que infestam a beira do rio e uma parte do centro.
Para chegar à mansão é preciso atravessar o Poti.
A travessia é feita por meio de barca.
O barqueiro é agregado do Barão e me conhece.
Os pais de Larissa estavam morando numa casa próxima à dela própria; uma casa que mandara construir especialmente para os pais.
Voltei à terra firme depois de vigorosas braçadas contra a correnteza forte que insistia em me levar para longe, para o fundo, engoli água, mas não pedi socorro, não gritei por ninguém; queria gritar por Larissa, mas ela não ouviria meu apelo.
Dizem que é uma mulher vulgar. Meu companheiro de trabalho, Menestrel, afirma que ela não tem coração. “Pensa apenas em se dar bem, não tem amor no coração”, disse ele, naquela mesma tarde, em torno de um litro de cachaça da boa, vinda de Castelo do Piauí e custando os olhos da cara.
“Veja, olhe para nós, não somos nada, nada representamos para aqueles que vivem do lado de lá da avenida Getúlio Vargas. A nobreza quer nos ver debaixo do chão, Jorge, e agora Larissa pertence à nobreza. Esqueça esta mulher. Ela não é mais para você.”
Convenci-me de que era verdade. Mas, naquela noite, ao retornar embriagado para a casa de palha em que morava com mamãe fui surpreendido por uma presença inesperada.
“Larissa?! O que faz aqui?”
Ela viera com motorista.
O carro ficara distante, coisa de um quilômetro e meio.
“Preciso de você, Jorge, me perdoe. Eu te amo.”
E se atirou em meus braços.
Fizemos amor ali mesmo, no meio da rua, encostados num muro de tijolos, um dos poucos existente naquele pedaço de chão paupérrimo.
“Como está sua mãe?”, perguntou, depois de baixar o vestido.
“Está bem. Por que fez isso?”
“Naquela tarde, depois que nos vimos lá na praça, fiquei completamente louca. Pensei em ti desesperadamente. Tive consciência de que minha vida não faz sentido sem você.”
“Mas você tem filhos, marido, uma vida que não tem mais nada a ver com a gente aqui da rua de baixo. Por que acha que ainda gosta de mim?”
“Por que, durante todo esse tempo, eu estava sentindo falta de alguma coisa. No começo, tentei dizer para mim mesmo que não era de ti, mas depois daquele encontro, não tive mais como negar.”
“E sua amiga?”
“Ducarmo?”
“Sim.”
“Não é minha amiga. É apenas uma dondoca que adora cortejar a esposa do Barão.”
Fui deixá-la próximo ao carro.
“O que disse para seu marido?”
“Nada. Ele não está em casa. Está viajando. Foi verificar o andamento dos negócios em São Luís. Retorna apenas na semana que vem. Se quiser me ver, atravesse o rio e vá até este ponto. A casa é minha, comprei para alugar em caso de algum empecilho futuro. Aqui está a chave. Te espero amanhã à tarde.”
Partiu.
Minha mãe estava me esperando na sala, sentada ao lado do rádio.
Um cantor de voz grossa cantava uma música sentimental; eu estava feliz e não conseguia esconder.
Tomei-a pelo braço e comecei a dançar com ela pelo meio da salinha miserável, em que a mobília mais valiosa era exatamente o rádio, única herança de meu falecido pai.
“Andou bebendo de novo, Jorge? Meu filho, você está bebendo demais. Por que não pára de beber? Quer acabar como seu pai?”
Meu velho morrera vítima de cirrose hepática.
A doença fora diagnosticada por um médico amigo, doutor Cabral.
Ele vinha regularmente à periferia para visitar os pobres e fazer consultas gratuitamente.
“Quer fazer carreira política”, protestava Januário Pinga.
Eu o cutucava. “Por que não pára de falar mal de todo mundo, Pinga. Tu fala demais, porra. Todo mundo quer levar vantagem. Será que não existe ninguém bom de verdade?”
Eu mal podia esperar a hora de encontrar-me novamente com minha amada.
Ela, antes de partir, colocara em minha mão, além da chave, um pequeno mapa com a indicação da residência.
Atravessei o Poti a nado.
Temia ser reconhecido pelo barqueiro.
Do outro lado, vesti a camisa que levara embrulhada num saco plástico; depois, a pé, dirigi-me ao endereço que Larissa anotara.
Não foi difícil encontrar.
Era uma ruazinha quase deserta.
Havia poucas casas, todas distantes umas das outras, com muros altos que contribuíam para isolar ainda mais os moradores.
Havia amplo e rico mobiliário na casa, que não era tão simples como eu imaginara.
Deitei no chão frio. Peguei no sono.
Acordei com os beijos quentes de Larissa.
Ficamos ali até tarde da noite, até que ela se foi, novamente com a promessa de nos reencontrarmos no dia seguinte.
“À noite, pois tenho de trabalhar durante o dia.”
“Não tem que trabalhar para ninguém. Tome...”
E me deu dinheiro suficiente para viver durante meses.
“Desculpe, meu amor, mas não posso aceitar”. Devolvi o dinheiro. “Não se ofenda, por favor.”
Larissa não se ofendeu. Partiu.
Também fui para casa.
Quando cheguei, estendi a camisa e, ao tirar a calça, senti o volume num dos bolsos.
Ela colocara o dinheiro ali. Era muito dinheiro.
Como explicar para minha mãe?
Decidi guardar para alguma dificuldade futura.
No quintal, escavei um buraco bem fundo; depositei o conteúdo enrolado em saco plástico e dentro de uma pequena caixa de madeira.
Em seguida, plantei um galho de arruda, árvore do meu sobrenome, e reguei com bastante água.
“Chegando tarde novamente, Jorge?”, era minha mãe. “Está bêbado de novo?”, cheirou-me a boca para sentir o hálito. Estranhou quando viu que eu não tomara uma única gota de álcool. “Quer comer alguma coisa?”
“Não, fique despreocupada.”
Dormi profundamente e sonhei com Larissa. Éramos marido e mulher e vivíamos juntos e felizes naquela sua mansão luxuosa do bairro nobre com nossos lindos filhos. Minha mãe morava conosco e ficava o tempo inteiro dizendo: “Que bom que meu filho parou de beber”, pareciar estar caducando de tanto repetir a mesma coisa.
A realidade era dura para nós.
Mamãe ganhara a vida lavando roupa. Tentara aposentadoria remunerada pelo governo; não conseguira.
Eu tinha que trabalhar na fábrica, arrimo de família.
Januário me parou a caminho da fábrica. “Cuidado, garoto, tem gente de olho em você...”
O Barão chegou dali a duas semanas; foram duas semanas em que eu e Larissa aproveitamos para nos encontrar o quando possível e quantas vezes pudéssemos fazer amor e desfrutar dos nossos corpos jovens e reprimidos pela distância social.
“Se eu tivesse nascido rico você não teria precisado casar com este sujeito.”
“Não fique assim, Jorge, quero que saiba que, mesmo casada com o Barão, serei sua para sempre.”
O Barão, na verdade José Fernandes Gonçalves, ficou furioso ao chegar e tomar conhecimento, por boca dos empregados da casa, que a esposa saía todas as tardes para lugar incerto e não sabido; e que saía sem avisar a ninguém e sempre sozinha.
Com sua vasta rede de informantes e puxa-sacos não tardou a descobrir a verdade.
Chamou Larissa e decretou: “Matarei este moleque.”
Ela se ajoelhou, confessou toda a verdade, disse que me amava, mas que era submissa às vontades do marido; implorou para que nada me fizesse, mas o homem estava irredutível.
“Pouparei tua vida porque é mãe dos meus filhos, mas não tolerarei uma segunda vez. Que tenha sido a primeira e última. Quanto ao cabra da peste, morrerá sem sombra de dúvida.”
Vejamos.
O confronto se deu num dia em que a Força Policial invadiu o bairro disparando tiros para o alto em perseguição a um indivíduo que diziam ser o temido incendiário.
Minha mãe já não dormia de tanto pavor.
Alguém estava ateando fogo nas casas e ninguém sabia quem era.
O governador Leônidas Melo, o chefe de polícia Coronel Evilásio e o senador José Cândido Ferraz haviam transformado a dramática situação em caso de política; ficavam buscando culpados para eximir-se da suspeita que recaía sobre cada um deles (com acusações mútuas).
Os policiais encurralaram Mazinho em sua própria casa (também de palha) e meteram bala nas paredes de taipa.
Felizmente, diante dos protestos, pararam de atirar; ninguém do lado de dentro ficou ferido.
Mazinho saiu de mãos para cima e os policiais partiram para cima dele dando pancada.
Não agüentei ver aquilo; rompi a multidão e enfrentei os macacos com a coragem e a loucura que recebera de Deus.
Vendo minha reação, os demais moradores também protestaram e os policiais terminaram recuando, prometendo voltar com reforço.
Antes de chegarem para cumprir a promessa de prender Mazinho fui atacado pelos homens do Barão.
Estava na beira do rio lavando as feridas do confronto quando ouvi o barulho do automóvel parando a alguma distância.
Depois, eles vieram, espancaram-me brutalmente, amarraram-me e jogaram-me no porta-malas.
Desmaiado, acordei com água morna sobre meu rosto.
Estava num porão escuro, provavelmente em lugar afastado da cidade.
Minhas mãos estavam amarradas para cima num poste de madeira.
De cima para baixo havia uma corrente, modo de um pelourinho, coisa de outros tempos para torturar escravos fugidios.
O Barão estava sorridente; como sempre, impecavelmente vestido em terno de linho branco e com chapéu Panamá.
“Então este é o rapaz que estava comendo minha mulher? Que decadência”, ironizou. “Eu sabia que Larissa me trairia, mas não pensei que fosse rebaixar-se tanto.”
“O que o senhor quer de mim?”, perguntei; tinha a visão conturbada pelo inchaço do rosto, sobretudo na área em redor dos olhos. Os capangas haviam batido firme.
“Tu não é capaz de adivinhar, ó imbecil. Acha que é assim tão fácil comer a mulher dos outros? Olha, rapaz, isso é crime. Em outros países, eles punem com a decapitação do... você sabe... do membro infrator. Há países em que a punição é a morte, à moda dos índios, que canibalizavam os adúlteros. Mas contigo quero agir diferente. Vou te dar uma chance...”
Ele começou a gritar. Parecia possuído por uma força estranha.
“VOCÊ SABE O QUANTO ME FEZ SOFRER, SEU DESGRAÇADO?”
Avançou sobre mim com a navalha. Me retorci, tentando mordê-lo, contê-lo de qualquer forma, mas estava com as mãos e os pés atados.
Não senti, a princípio, a dor, que veio depois com intensidade.
Perdi a consciência.
Acordei vários dias depois num cômodo da Casa de Misericórdia.
Ao meu lado, uma freira que fazia as vezes de enfermeira.
Em seguida, entrou um senhor alto vestido de branco.
Abriu as janelas.
A luz penetrou no ambiente lúgubre.
A brisa da manhã entrou junto.
Estava me sentindo menor.
“O que houve comigo, doutor?”, perguntei, tropeçando nas palavras, com medo de ouvir a verdade.
O médico falou firmemente. Toda a verdade.
“Seus agressores lhe deixaram na pior, meu rapaz.”
Sim, eu fora “capado” – ou castrado, como preferir.
Fiquei muitos dias remoendo minha dor, agravada pela ausência de Larissa.
Não tive notícias dela por muitas semanas e meses, até que numa tarde recebi um emissário.
Ela me esperava em nosso antigo “ninho de amor”.
Não tive como resistir; fui ao seu encontro.
Ficamos abraçados demoradamente.
Depois, nos despedimos, agora para sempre (nossas vidas corriam perigo).
Fui até o quintal de minha casa.
Desenterrei o dinheiro que Larissa havia me ofertado.
Falei com um conhecido da Força Pública. Ele negociava armas no mercado negro.
Eram armas não registradas e apreendidas em operações policiais.
Sobrou-me algum dinheiro para a viagem.
Fui para diante do estabelecimento comercial do Barão, na verdade uma de suas inúmeras fachadas.
Ele estava sorridente e confiante ao sair ao meio-dia para almoçar em companhia da esposa e dos filhos.
Os “cães de guarda” não o acompanhavam na ocasião, para minha sorte ou azar.
Cheguei bem perto, caminhando ligeiro e com a cabeça baixa para não ser reconhecido à distância.
De fato, ele me reconheceu apenas a um passo de si; impossível reagir àquela distância.
O primeiro tiro foi na barriga, para imobilizar; o segundo, na cabeça – para matar.
Depois, andei em direção ao rio, mergulhei em suas águas barrentas e nadei de um lado para outro, até meus braços e pernas cansarem, tentando lavar-me do pesadelo e livrar minha consciência do remorso pelo crime cometido.

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