domingo, 1 de janeiro de 2012

Flor no asfalto

Cícero Manoel. Foto de Kenard Kruel.


Quando tinha dez anos, O. G. Rego de Carvalho escreveu na escola uma redação, publicada n’O Fanal, jornal editado por seu avô: era sobre a feira. O grupo escolar foi o mesmo em que estudei, três décadas depois, não mais no sobrado. Mandaram construir um prédio, na Praça do Perdão, e o pintaram de amarelo. Ainda hoje é amarelo. Outro dia, voltei a Oeiras, passei na calçada, encontrei a porta aberta. Segurando a respiração, entrei. Não havia ninguém. No meio do silêncio, na sala de paredes altas, fiquei quieto, ouvindo o quê, meu Deus? O vigia me tirou do devaneio e me viu sair, sem nada entender.

A feira ficava perto. Foi meu pai quem me levou pela primeira vez. Uma multidão de animais e de gente e de coisas que eu nunca tinha visto. Uma algazarra, um colorido, um sol quente... Aprendi a gostar da feira como aprendi a gostar de meu pai: sem entender por quê. Ele comprava e deixava as coisas no comércio do professor Possidônio Queiroz, único negociante do mercado - e da cidade - que vendia livros. 

Inda hoje vou à feira. Toda semana. É a minha missa. No Mafuá, palavra negra como o carvão vendido perto da ponte de ferro, o melhor da cidade, e o mais barato. Não me pergunte por que escolhi aquele mercado. Só lá, e não em outro, encontro araticum, no tempo; o gengibre e o açafrão; a goma fresca da casa de farinha de Antônio Divino; folhas de couve para o suco verde; macaxeira não falta, sempre boa; milho, de irrigação ou não; frutas do mato como pitomba e umbu; no tempo da safra, mangas e cajus, que nem levo, pois tenho dois pés em casa botando, fora os presentes que recebo. E não é só isso, pois ninguém vai à feira só pra comprar. Tem os tipos humanos, como o vendedor de cibazol, os bêbados, os mendigos, uma pá de gente. Os amigos que a gente encontra pro dedo de prosa. O carro de som anunciando pomada de copaíba. Às vezes aparece um cego tocando pandeiro e cantando versos endiabrados. E mais...muito mais coisas tem a feira...

Tem até arte! Não só a natural, que se faz inconscientemente, só pelo movimento da vida, da marca suja da vida. Tô falando da arte feita com intencionalidade. É que tem ali, espremido entre dois pontos mais ou menos grandes, um quartinho que, se muito tiver, mede três por quatro metros, onde Dona Zefinha instalou o Armarinho São Francisco, há trinta e cinco anos. Antes mesmo da morte dela, seu filho, o artista plástico Cícero Manoel, deu continuidade ao comércio de miudezas usadas pelas costureiras, mas com uma feliz inovação: sem desmontar o armarinho, transformou-o no Espaço Cultural São Francisco, o único, que eu saiba, a funcionar num mercado popular. 

Pequenos objetos, que Cícero foi recolhendo aqui e ali, misturam-se aos avisos escritos nas caixinhas de papelão - “cobrem-se botões”, “prega-se ilhós” - e aos artigos expostos à venda, que variam de rolos de cordão de rede, armadilhas para ratos a brinquedos para crianças. Expostos despretensiosamente no exíguo espaço, na estante única ou em cima do armário, metamorfoseiam-se naquilo que são: singelos exemplares de decoração ou arte, que o olhar desatento nem sempre apreende como tal.

Há uma exposição permanente de desenhos, pinturas e fotografias, espalhados na única parede livre. Quase todo mês acontece de Cícero organizar mostra de artes plásticas. Até ontem, por exemplo, quem expôs foi José Maria, que começou a pintar depois dos oitenta anos. Vez em quando, há lançamento de livro ou outra arruaça, em que se serve garapa de cana e pastel, feitos ali perto. O armário de madeira, abarrotado de livros, é o único móvel da Biblioteca Dona Zefinha, que tem entre suas obras a primeira edição de O Homem e Sua Hora, de Mário Faustino. 

Em quatro anos de existência, o espaço Cultural São Francisco amealhou, pelo esforço de Cícero, considerável número de obras de artistas plásticos de vários lugares do Brasil. Ele agora divide parte desse acervo com o público, através da exposição As Cores de Dezembro, cuja visitação começa hoje e vai até janeiro: desenhos e gravuras em metal, xilo e litografia de mais de trinta criadores, entre os quais os piauienses Nonato Oliveira, Albert Piauí, Liz Medeiros, Dora Parentes, Davi Cury e o inesquecível Fernando Costa. E outros como Carlos Scliar, Glauco Rodrigues, Antonio Maia, segundo ele, “fundamentais para a arte brasileira”.

Do asfalto, do nojo, da memória, ia dizendo da miséria, no coração do Mafuá, brota, insólita, uma flor para Teresina, que nem sempre ama a arte como devia. O Espaço Cultural São Francisco – perdoem a comparação pífia – é um oásis no deserto hostil da cidade, no âmago da poética, prosaica, efêmera, eterna feira.

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