domingo, 15 de janeiro de 2012

Existirmos

Dr. Heli Nunes e a Carne Seca é Servida.


O velho homem conduz o homem moço pela mão. Atravessa os cômodos da casa e alcança um quarto reservado. Era ali o reduto juvenil do seu filho. O homem moço se acomoda, deita em uma rede e se põe a olhar o retrato do antigo dono do lugar quando criança. Nenhum cansaço resiste a um repouso naquela rede e nenhuma saudade fica quieta diante daquela foto da bela infância do amigo. Há vazio no espaço, no físico e no sentimental, diante da ausência do poeta / parceiro que de tão irrequieto resolveu demarcar o tempo da sua vida, estabelecendo que ela deveria cessar ainda na juventude com uma trágica abreviação.

Caetano Veloso, lendo, em Teresina, a Carne Seca é Servida.

A cena do parágrafo acima cabe em uma novela; ou em um romance; ou em um conto ou, simplesmente, em muitos quadros da vida real. E foi justamente num destes que se operou o encaixe. O velho homem, um defensor público em recesso, prenome Heli, devolvia ao homem novo, o Caetano vate, veloz e Veloso, o que este paradoxalmente nunca tivera: a ambiência doméstica de Torquato, o Neto, filho de Heli. Nesse lugar Caetano sentiu pulsar a canção, como numa parceria transcendental, e deu a luz cristalina a "Cajuína", uma das mais belas das suas composições.

"Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria viva era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina."

Anos, muitos anos depois, lá mesmo na capital piauiense, que em natural volúpia se beija, a um só tempo, com os rios Poti e Parnaíba, Torquato Neto foi objeto de uma conversa que tive com Roberto, outro Veloso, entre goles refrescantes e cristalinos de cajuína. Reportou-me a ida de Caetano a Teresina, o encontro com os pais de Torquato Neto, a quase compulsória hospedagem na casa destes e a inspiração para a música acima referida. Falou-me do espírito irrequieto e radical de Torquato, fruto do meio-norte que saiu verdoso para a Bahia, onde estudou e foi expulso de um colégio de padres, intolerantes com a sua agitação cultural. Acostou-se a uns iguais e daí surgiu o Tropicalismo, movimento poético e artístico que não se suportou nos limites da terra do Senhor do Bonfim e foi ditar

regras ao marasmo intelectual que invadia o país no pós-revolução meia quatro, a partir do Rio de Janeiro. Com quem? Bethânia, Gil, Caetano, Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa, Rogério Duprat, Capinam e outros. Era uma espécie sui generis de anarquismo politizado, com estética diametralmente oposta à comportada Bossa Nova, sem enfrentamento radical entre os membros dessas correntes.

Disposto a balançar as estruturas do stablishment criativo, circulou bastante. Fez roteiros de shows (Ensaio Geral, Pois é, Maria Bethânia), escolheu trilhas de novelas (Irmãos Coragem e Minha Doce Namorada), foi redator da revista Cláudia, do Jornal do Brasil e do Estado de São Paulo, além de celebrar casamentos poéticos em diversos lados, que renderam filiação díspar e genial, como "Go Back", com Sérgio Britto 

"Você me chama
Eu quero ir pro cinema
Você reclama / Meu coração não contenta

 /... /

Só quero saber
Do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder"

consagrada na discografia dos Titãs ou "Pra Dizer Adeus", com Edu Lobo

Adeus
Vou pra não voltar
E onde quer que eu vá
Sei que vou sozinho

/... /

E no entanto eu queria dizer
Vem
Eu só sei dizer
Vem
Nem que seja só
Pra dizer adeus".

E a cena criativa de Torquato foi por ele mesmo encerrada na madrugada de 10 de novembro de 1972. Após comemorar o 28º aniversário em uma boate carioca, trancou-se no banheiro do seu apartamento, ligou o gás do aquecedor após rabiscar um bilhete com a frase radical: "Para mim, chega!". Deitou e morreu.

Para mim, não chega. É pela poesia de Torquato que vale existirmos, em resposta ao verso de Caetano.

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