sábado, 13 de novembro de 2010

Novembro, mês do anjo torto

TN, no D'Engenho de Dentro, hospital psiquiátrico do Rio.
Foto de Marlene Mendes.

“O HOSPÍCIO É DEUS”

Nos últimos anos de vida, Torquato Neto alternou uma ativa militância cultural e poética com momentos de crise e isolamento, marcados por várias internações no D'Engenho de Dentro, por embriaguez ou intoxicação por drogas diversas (principalmente gás de cozinha, um de seus vícios), transitando do LSD à cachaça, na visão de José Geraldo Couto1.
Carlos Calado informa que “as altas doses de álcool que Torquato consumia diariamente, já na época da Tropicália, certamente acentuaram o estado depressivo e auto-destrutivo que passou a perturbá-lo nos últimos quatro anos de vida. Por vontade própria, chegou a procurar clínicas especializadas para se desintoxicar. Foram nove internações, no Rio de Janeiro, no famoso D'Engenho de Dentro, e até em Teresina, Piauí, onde nascera”. Aqui, foi “hóspede”, várias vezes, do Sanatório Meduna, do saudoso Dr. Clidenor de Freitas Santos, um dos maiores intelectuais do Piauí, membro da Academia Piauiense de Letras, que ajudou a modificar o panorama da psiquiatria em nosso Estado.
Aderbal Tomás de Aquino2 narra um caso que mostra muito bem o lado travesso, irreverente, debochado e, mesmo gozador, de Torquato Neto, bem naquela eu perco o amigo mas não perco o humor. Uma certa ocasião, estando em Teresina, Torquato Neto o convida para uma temporada de férias no Rio de Janeiro, fazendo a viagem por terra, de ônibus. Torquato Neto deu ao Aderbal um embrulho e pediu que não se separasse daquele embrulho por nada desse mundo. Era um pacote enorme, que, de quando em quando, Torquato Neto pegava, entrava em algum reservado, demorava um pouco, devolvendo-o depois para o Aderbal. Essa “esquisitisse” ocorreu de Teresina ao Rio de Janeiro, passando por todas as paradas nas rodoviárias, por todos os guardas rodoviários, “numa boa”. Chegando ao Rio, com o embrulho já bem diminuído, Aderbal, já cheio de curiosidade um pouco decifrada, só para ter certeza pergunta qual era o conteúdo “daquele troço”, recebendo como resposta: “É maconha, Aderbal, das boas. Você, sem trocadilho, Aderbal é um barato”.
Essa história de transformar os amigos em “traficantes” quase ocorreu com o primo Paulo José Cunha3, que conta a história: O filho da mãe tinha que viajar para o Rio de Janeiro, antes de mim. Me chama e me manda pegar um embrulho debaixo do camiseiro, pra levar pra Brasília. Não era para abrir de forma alguma o embrulho. Lá de Brasília era para eu mandar pro Rio de Janeiro. Eu juro que não sabia o que tinha dentro do embrulho, mas a curiosidade mata. Abri a caixa de pandora, Era fumo, da melhor qualidade. Fiquei pensando, meu Deus, vou virar traficante mesmo! Dobrei o embrulho e o guardei no mesmo lugar. Perto de viajar pra Brasília, ainda estava pensando na minha condição de traficante, quando procurei pelo embrulho, ele sumiu. Eu não sei se a tia Saló descobriu o que era e deu sumiço, para alívio meu e desespero dele, com certeza, ou se alguém mais esperto fez a festa com ele”.
O embrulho foi achado e incinerado por dona Salomé, que ficou esperta com o filho e com os sobrinhos, desde o dia que descobriu que era uma inocente plantadora de maconha em seu quintal. “A tia Saló estava regando as plantinhas que o Torquato Neto tinha plantando no quintal da casa dela. Ela, toda jeitosa com as plantinhas plantadas com todo o cuidado pelo filho querido, que a recomendara ter bastante atenção, inclusive com o pé de manga para não cair nenhuma fruta nas plantas, que eram frágeis e podiam morrer. Pois bem, o tio Vital Araújo, perito criminal, chegou lá e encontrou a tia Saló, a irmã dele, agachada, aguando com todo o carinho as platinhas do filho da mãe. Ele olhou sério pra ela, fazendo média, e perguntou se ela agora era dona de plantação de maconha. O Torquato Neto tinha espalhado maconha por todo o quintal”, rememora Paulo José Cunha4.
Arnaldo Albuquerque5 lembra que Torquato Neto, em Teresina, se metia com traficantes da pior qualidade para comprar maconha e outras drogas. Vital Araújo, que trabalhava na Secretaria da Segurança, tendo essa informação repassada pelos colegas de repartição, que não queriam prender Torquato Neto por causa dele, que ficava morto de vergonha com a situação, resolveu abastacê-lo. “Um dia o Vital chegou com uma mala cheia de fumo, ou melhor uma malona, cheia até a tampa, de camarãozão, de tubarãozão, mas Torquato Neto reagiu bem: ‘O que é isso, tio, o senhor está ficando doido?’. ‘Isso é para você deixar de procurar bandido para não me fazer passar vergonha lá na Secretaria’. Torquato, se fazendo de desentendido, baixou a cabeça, e disse que o Vital estava mal informado, que ele não estava pegando bagulho nenhum, que estava super limpo’. O Vital, cara marrada, jogou a malona em cima do Torquato, dizendo: ‘Pega, tu não queres não, tu não queres não, porra?’. Mas o Torquato resistiu bem, devolvendo a malona e saindo do local onde estava, fingindo que estava puto de raiva”.
Paulo José Cunha6 analisa, piscanaliticamente, que as drogas em Torquato Neto eram um derivativo para a ânsia de futuro. “Torquato Neto transou de tudo, como experiência e como vício, da maconha, à cocaína, ao LDS, ao xaxixe, tudo, inclusive ele tinha mania de cheirar gás de cozinha, e dizia que o cheiro o agradava, o fascinava muito, esse mesmo cheiro que o levaria ao ato final, à sua morte. O Torquato vivia diblando a morte. Me lembro que o Torquato, num daqueles momentos de ansiedade por causa das drogas, me pegou pelo braço e disse que eu preciva ir com ele, com urgência, resolver uma parada na praça do Liceu. Chegamos lá, ficamos sentandos um bom pedaço, até que chegou um cara com uma pasta 007, uma profissional, abriu e foi dizendo: ‘Aqui tem manga rosa, tem não sei o que, você escolhe, paga e sai, sem dar bandeira, que estou de olho’. O Torquato escolheu, pegou o pacotinho, pagou e saímos, ele com o pacote debaixo do braço, na maior tranqüilidade. Torquato foi testar o produto na casa da vovó, lá no quintal, debaixo da goiabeira, com o Arnaldo Albuquerque, que fez, inclusive, uma foto do Torquato aprovando o produto”.
Nacif Elias7 relata que, certa vez, teve uma experiência um tanto ruim com Torquato Neto, por causa dessa sua mania de cheirar gás de cozinha: Ele devia ter uns 26 anos, era mais ou menos o ano de 1970, e ele ficou em minha casa, em Botafogo. Não saia pra nada, não comia quase nada. Ficava o tempo todo trancado. Só bebia e torrava fumo pra cacete. Uma vez o Vitor chegou lá e encontrou e o encontrou em cima do fogão, com os bicos de gás abertos. Nesta semana que ele passou lá em casa, a primeira coisa que fez foi ir na quitanda comprar uma garrafa de cana. Bebia aquela merda e fazia uns charutos enormes de maconha e fumava aquela porra com papel de padaria. Torquato era muito cervejeiro. Na época era o choppe. Mas, ele bebia mesmo era cachaça. Nós misturávamos tudo e bibíamos a noite toda, discutindo. Ele adorava uma discussão. Puxava qualquer assunto. Ele tomou muito LSD. Foi um dos primeiros caras que eu vi cheirar muita coca. O grande problema do Torquato eram as misturas. Ele misturava o escambau e continuava bebendo e fumando e cheirando tudo. Ele dizia: ‘Nacif Elias, vamos beber porque eu gosto é de ficar bêbado. Fizemos muitas loucuras, como deitar no meio da rua Laranjeiras, de braços abertos, esperando os carros passar. Eu, ele e a Ana Maria. Numa outra situação, Torquato Neto, o Helinho, irmão da Ana Maria, e o Aderbal, num dos momentos mais brabos da ditadura militar, no gozo maior do regime militar, no meio daquele bando de milicos todos fardados com roupa de guerra, cheios de armas para todos os lados, tanques, o diabo e o escambau, eles pegam, cada um com um cachimbo cheinho de macanha, acedem o cachimbo e passam, empávidos, tranqüilamente, pelas linhas de fogo, para atravessar a rua, numa provocação pueril, mas do caralho!”.
Luiz Carlos Maciel8 afirma que o uso do LSD em algumas pessoas provoca o aumento do poder do intelecto e de criação, em outras provoca sensações de terror tão fortes que os tranqüilizantes e barbitúricos são importantes para curar, devendo ser evitado pelos que sofrem de personalidade instável e os portadores de tendências esquizóides. O LSD, em personalidades psicóticas, pode estimular o impulso ao suicídio.
Gilberto Elias9 ensina que “Muitas experiências mostram que o estado de espírito de espírito da pessoa cresce ou diminui, afunda ou exarceba em conhecimento, em produção, fica muito criativo com o uso da droga, depen-dendo de como ela esteja para usá-lo. Pelo que sei, através do Roberto Ilas, que acompanhou a progressão da loucura de Torquato Neto, Torquato Neto era depressivo e nele as drogas detonava essa ansiedade de futuro, falada pelo Paulo José Cunha, ampliava essa coisa, latente e que se dessencadeava com uso das drogas que, estou informado, eram as mais variadas possíveis, maconha, cocacina, haxixe, LSD, gás de cozinha, cachaça, até perfume, que ele cheirava e ingeria. Tudo isso só tinha um caminho, sem volta”.
A seguir, anotações de Torquato Neto em sua “estadia” no D'Engenho de Dentro:

Dia 7/10

um recorte no meu bolso, escrito ontem cedo, ainda em casa: “quando uma pessoa se decide a morrer, decide, necessariamente, assumir a responsa-bilidade de ser cruel: menos consigo mesmo, é claro. é difícil, pra não ficar teorizando feito um idiota, explicar tudo. é chato, e isso é que é mais duro: ser nojento com as pessoas a quem se quer mais bem no mundo”.
o recorte acaba aí. hoje, agora, estou fazendo tempo enquanto os remédios que tomei fazem efeito e vou dormir. este sanatório é diferente dos outros por onde andei - talvez seja o melhor de todos, o único que talvez possa me dar condições de não procurar mais o fim da minha vida. Soube hoje que o rogério esteve aqui, antes, preciso muito conseguir explicar ao médico tudo o que é necessário. se eu não escapar desta vez - estou absolutamente certo de que jamais conseguirei outra. ainda hoje, no entanto, sentado aqui, escrevendo, páro e vejo bem lá dentro de mim, acesa, a luz que me guia para a destruição. não tenho vontade de viver, mas quero. não sei porque continuar, mas quero. alguém vai ter que me explicar alguma coisa e é por isso que vou ficar aqui, até que Deus dê bom tempo. não sei de nada. não quero viver, mas preciso. preciso aprender e talvez aprenda aqui, com os médicos daqui e em companhia dessa gente com quem aprenderei a conversar, conviver e aprender. ou talvez não seja nada disso. ou talvez eu nem sequer mereça nada e continue perdendo o tempo destinado ao tempo de além de mim, sem mim, sem mim, nos braços do deus desconhecido, o que vai me receber em seus braços e me aquecer para sempre. ou talvez não, e eu precise desse tempo agora. sei que a estas alturas boa parte do meu cérebro já está definitivamente corroído pela bebida. minha memória não vale mais nada e uma simples notícia de jornal tem que ser lida duas, três vezes para que eu entenda alguma coisa. no entanto, mesmo assim, talvez eu precise realmente desse tempo e do que virá: nem que seja, pelo menos,

8/10

vim para a escola aprender a viver. isto aqui é uma escola. meu deus, eu preciso conseguir nesta escola os instrumentos que me preservarão e que me desviarão do encontro marcado que é necessário adiar. tenho passado a vida à procura de deus mas agora não o quero mais.

9/10

aqui dentro - e é óbvio - os piores dias são os sábados e os domingos. eu não sei como acreditar mais em tudo isso - hoje é sábado, amanhã é domingo, depois é segunda etc. aqui dentro é mais fácil. mas a volta ao lar, ao útero, o encontro com deus - esta pode ser a tentação do demônio. mas não é não. deus está solto e foi caetano quem gritou primeiro. posso reconhecê-lo em seus disfarces e vou ao seu encontro como - exatamente - sei que vou morrer.
lá fora, os piores dias são todos, principalmente quando me custam vinte e quatro horas de medo, e solidão e monólogos. por isso é difícil participar da contagem regressiva e esperar por domingo, segunda, terça etc: a ilusão dos que não compreendem que o número zero é o princípio e o fim de tudo e que a vida é um processo linear que ao mesmo tempo em que vai, está voltando.

10/10

ontem à tarde comecei a escrever uma letra para macalé. no começo ia bem mas a segunda desbundou tanto que terminei me desculpando no final prestando com ela uma homenagem ao chico buarque. hoje é domingo. meu pai, minha mãe e ana devem vir à tarde. vamos ver o que querem. perdi o sono durante a noite - à 1 da matina - e depois disso só dormi muito mal.
não entendo como demorei tanto a compreender perfeitamente uma coisa tão simples: que eu faço da bebida exatamente o que o resto do pessoal faz com pico. eu sabia o que estava fazendo mas nunca havia olhado uma coisa à luz de outra. é engraçado: eu falo de pico como de um instrumento mortífero (reticências).
pela primeira vez estou sentido de fato o que pode ser uma prisão. aqui, as portas que dão para as duas únicas saídas existentes estão permanen-temente trancadas - e há uma pequena grade em cada uma delas, de onde se pode ver os corredores que dão para as outras galerias. Depois delas, uma espécie de liberdade. não se fica trancado em celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredor de aproximadamente 100 metros por 2,5 de largura. somos 36 homens aqui dentro, 36 malucos, 36 marginais - de qualquer maneira esperamos a “cura” no sanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se “regenerem” etc etc. aqui, o carcereiro é chamado de plantonista - e são aqueles homens de branco sobre os quais rogério se referiu um dia, há pouco tempo. aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada, como eu gosto. minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentes mentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPE como pertencentes às classes C, D, Z. estamos aí! em cana. o chato é a comida, que é péssima.

12/10

eu queria escrever sobre ana mais ainda é cedo, eu não sei, não sei se posso e, finalmente, vejo que não quero. sobre a vinda de mamãe e papai aqui, também não: falta qualquer novidade a esse respeito - a não ser que valha a pena anotar que reencontrar papai depois de três anos é como reencontrar um velho amigo que não via há três dias; e reencontrar mamãe depois de dois anos é como ser apresentado a alguém cujo nome, fama e aventuras eu já conhecia de sobra - e que, portanto, me pareceu estranha, distante, mítica. mais ou menos assim. mas prefiro escrever sobre este lugar e minha vida dentro dele. a melhor sensação é a de reconquistar inteiramente o anonimato no contato diário com meus pares de hospício. posso gritar: “meu nome é torquato neto etc etc”; do outro lado uma voz sem dentes dirá: meu nome é vitalino: e outra: o meu é atagahy! aqui dentro só eu mesmo posso ter algum interesse: minhas aventuras, nem um pingo. meu nome podia ser josé da silva - e de preferência, mas somente no que se refere a mim. a eles, não interessa. o dr. oswaldo não pode fugir, nem fingir: mas isso eu começarei a ver, de fato, logo mais quando teremos nossa primeira entrevista, o anonimato me assegura uma segurança incrível: já não preciso mais (pelo menos enquanto estiver aqui) liquidar meu nome e formar nova reputação como vinha fazendo sistematicamente como parte do processo autodestrutivo em que embarquei - e do qual, certamente, jamais me safarei por completo. mas sobre isso, prefiro dar mais tempo ao tempo: eu sou obrigado a creditar no meu destino. (isso é outra conversa que só rogério entenderia). tem um livro chamado: o hospício é deus. eu queria ler esse livro. foi escrito, penso, neste mesmo sanatório. vou pedir a alguém para me conseguir esse livro.

13/10

eu: pronome pessoal e intransferível. viver: verbo transitório e transitivo, transável, conforme for. a prisão é um refúgio: é perigoso acostumar-se a ela. e o dr. Oswaldo? Não exclui a responsabilidade de optar, ou seja:?

14/10

onde, em mim, a morte de jimi hendrix repercutiu com mais violência? há mais de um ano, em londres, eu havia dito com absoluta certeza: ele vai morrer. onde, em jimi hendrix, eu vi o espectro da morte? eu havia estado com ele, carlo e noel - mais uns três sujeitos - naquele enorme apartamento de Kensington e quase não falamos nada durante o tempo que fumamos haxixe e escutamos aquele álbum branco dos beatles e mais alguns discos que não me lembro - nem poderia lembrar. por que é que eu não sei, mesmo agora, escrever qualquer coisa mais sobre hendrix, a não ser que, naquele dia, conferi a perfeita extensão de sua música em sua cara - obedecendo à ordem com que as duas coisas me foram apresentadas? eu sei que não posso escrever jamais qualquer coisa sobre o assunto, sobre a tremenda curtição daquela noite etc etc. agora o homem está morto, menos ainda. Eu não ousaria - como não ouso sequer contar esse fato aos poucos amigos que ainda tenho. Interessa agora saber o seguinte: por que, diante o impacto que o conhecimento pessoal, social com o homem produziu sobre mim, ao ponto de não conseguir, depois, pelo menos “recordar” o tempo aproximado que tivemos, eu e carlo, naquele apartamento - por que - sabendo de antemão sobre jimi hendrix - por que ainda me surpreendi e me abalei com a notícia de sua morte, no dia dela? Ou seja, voltando ao início: onde, em mim, a notícia conseguiu repercutir ainda com violência, me pegando de “surpresa”? A gente sabe que toda morte nos comunica uma certa sensação de alívio, de descanso. não existe, pra mim, a menor “diferença” entre hendrix que eu ouvia antes e o que posso ouvir depois, agora, de sua morte. ele sempre foi claro, limpo, preto. eu disse: o homem vai morrer, e não demora mais dois anos. beneto e ana ouviram, em londres.
Eu ouvia os discos, sabia o homem - e, por cima, ainda o conheci pessoalmente e juntos, numa noite gelada de londres, curtimos o barato de queimar haxixe e escutar os beatles, com carlo, noel e mais uns três caras que estavam lá, criolos. torno a perguntar: onde? onde em mim? jimi era “o homem que vai morrer” mas não havia datas em sua vida. por que então uma data de jornal ainda me espanta e fere? eu não sei (não posso, nem quero explicar por que eu, e muita gente mais, sabia de tudo desde muito tempo. posso, com simplicidade, dizer apenas que eu sabia ler a sua música).

20/10

É preciso não beber mais. Não é preciso sentir vontade de beber e não beber: é preciso não sentir vontade de beber. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus. É holocausto. É preciso. É preciso não morrer por enquanto. É preciso sobreviver para verificar. Não pensar mais na solidão de Rogério, e deixá-lo. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer na via pública.

12/11

anoto que saí do hospital, todo esse tempo depois. é tudo como é: aqui estar, de volta em volta como sempre, mais uma vez. não sei direito, hoje, o que pode surgir disso tudo. sei o que significa e quanto pesa a mais para a adição (paralela à contagem regressiva?) do chamado acúmulo de experiências. acontece que não se vive intensamente sem punição; não se experimenta o perigo sem algo mais do que o simples risco, nem se morre por isso de repente. não estou, portanto, em condições de explicar nada. por isso, certamente, todo esse tempo sem anotar nada. é preciso descobrir porquê tudo. organizar então e deslocar a minha experiência, as minhas experiências, numa direção xis, para. como todo dia é dia D, e disso estou certo, concluo com este “cinismo” lógico: daqui pra frente, podem crer, posso crer, tudo vai ser diferente. torquato rides again! upa, upa!

13/11

a literatura, o labirinto perquiridor da linguagem escrita, o contratempo, a literatura é a irmã siamesa do indivíduo. a idade das mesas, evidentemente, não comporta mais a literatura como uma coisa viva e por isso em nossos dias ela estrebucha e vai morrer. a literatura tem a ver com a moral individual e moral individual não interessa - não existe mais. nossa época exige a descrição de painéis e o close-up tende a não interessar nem como psicologia. não precisaremos de retornar ao teatro de máscaras porque, se queira ou não se queira, a massa onde praticamente nos perdemos já é a máscara, já nos abriga e revela, é a supra máscara. planos gerais. painés. o homem moderno não existe como indivíduo, mas como tipo - e esses tipos não são tantos quanto todos nós. são relativamente poucos. somente me interesso pelo tipo e cada tipo, classe, nas diversas sociedades massificadas, obedece a comportamentos mais ou menos standards. interesso-me por compreendê-los (estudá-los) e abandoná-los, meu problema, inclusive o de cama, inclusive o de mesa, inclusive o de relacionamento, é problema do meu tipo X perdido nas massa que o plano geral não estilhaça, por literário, em todos os seus (milhares, bilhares) de “exemplos”: células que não têm mais vida se isoladas na psicologia do indivíduo. O cenário é agora o único personagem vivo. O cinema urbano tem que ser do-eu-meu-tal, atualizado como as atualidades, uma primeira página de jornal, painel, afresco.

21/11/70

até hoje eu não pude pensar direito sobre jesus. não sei direito onde ele está, em mim. não sei, por causa disto, onde estou (em mim) entre as massas com relação ao grande líder. só hoje começou a me esclarecer bastante o fato recentemente percebido de que jesus tenha sido o primeiro líder subversivo do ocidente - o primeiro, no duro, que provocou uma grande cisão do sionismo.

9/12

tudo continua. continua parado no centro de minhas especulações, e não sei dizer se já consegui me desfazer de qualquer uma delas. estou morrendo. mais uma vez morro soterrado em minhas perplexidades - não sei para o que estou - e deixo andar. é preciso que eu adquira condições que me permitam sobreviver. o que é sobreviver? tenho conseguido sobreviver até aqui, mas... o que vivo, o que consigo escrever, o que posso ir sendo são meus bens, não disponho de outros, o que não sou me mata: assim, assado, sempre: tudo continua como sempre, o mesmo esquema para o fim, a mesma vida de cocô melado, a mesma merda. só deus pode me salvar, mas eu não conheço deus nem sei onde procurá-lo. disse que estou morrendo - uma vez mais - vivo só pra isso.
pode ser. eu tenho que “assumir” isto que eu vejo. a minha frente. eu não posso mais. a literatura se enterra comigo. eu estou aqui no brasil. alô. câmbio?
estou inteiramente sozinho. ninguém pensa por mim. o general ninguém pensa por mim. eu não valho nada. não sei onde reencontrar minha coragem. é um longo discurso. é uma loucura. eu pensei que podia driblar tudo e ir fazer cinema, uns filmes, lixo.
eu tenho que assumir a minha miséria pequeno burguesa porque eu só posso fazer um filme se ele for a favor ou contra essa miséria. e eu não posso ser e não ser como querem os analistas. eu tenho que destruir em mim essa miséria louca.

3/4/1971

bastam-me os compromissos que já sou obrigado a ter. Não venham com invenções bestas, se eu quiser botar um disco acompanhando o filme de superoito eu boto. não tem nada disso de não é assim. barato legal é o livro de trotsky, “nossa moral e a deles”, grandes sacadas, super sarro. além do mais macalé foi ontem pra londres e ainda tenho de procurar outra pessoa pra fazer e cantar as músicas populares brasileiras que estou com vontade de fazer agora. hoje mesmo vou ter de encontrar uns e outros pra trabalhar e trabalhar com menescal, por exemplo, é melhor do que sentar no jornal e ficar escrevendo a prazo fixo. I hate it.

4/4/71

Debaixo da tempestade
sou feiticeiro de nascença
atrás desta reticência
tenho o meu corpo cruzado
a morte não é vingança

7/4/71

- Foi um caminhão que passou. bateu na minha cabeça. aqui. isso aqui é péssimo, não me lembro de nada.
- Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. são bestas. não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba.- Pode me dar um cigarro? eu só tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. pode me dar as vinte.

16/7/71

cidades como séculos - um século atrás do outro, na frente do outro. o tempo se ultrapassa no espaço do tempo. agora é nunca mais, e nunca antes. agora é jamais - um século atrás do outro. na frente do outro. ao lado. um dia é paralelo ao outro. isso tudo é um esquema muito chato enquanto a coisa anda: isso é que é legal, do mesmo jeito saber que é legal saber que isso tudo pulsa, de alguma maneira, no ponto misterioso do desenho. princípio, fim. total e único. geral. cidades. ninguém pode mais do que deus!

1 COUTO, José Geraldo. Torquato. In Folha de São Paulo, caderno Mais, 8.11.1992.
2 AQUINO, Aderbal Tomás de. Depoimento ao autor.
3 CUNHA, Paulo José. Depoimento ao autor.
4 CUNHA, Paulo José. Depoimento ao autor.
5 ALBUQUERQUE, Arnaldo. Depoimento ao autor.
6 CUNHA, Paulo José. Depoimento ao autor.
7 ELIAS, Nacif. Depoimento ao autor.
8 MACIEL, Luiz Carlos. Anos 60. Porto Alegre, L&PM, 1987, p. 52
9 ELIAS, Gilberto. Depoimento ao autor.

Um comentário:

Jorge Guerra disse...

Excelente este tópico. Um pouco do nosso ícone TN.