quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Novembro, mês do Anjo Torto

TN: 9.11.1944, THE, 10.11.1972, TJ.

OS ÚLTIMOS DIAS DE PAUPÉRIA

JOSÉ CARLOS OLIVEIRA

OS ÚLTIMOS DIAS DE PAUPÉRIA, de Torquato Neto: um livro que é o resultado de uma crise espiritual, tão chocante ou mais que o Chupacto de Amor, de Samuca e Valquíria, até agora inédito. Fragmentos: poemas, artigos de jornal, um Diário fragmentado sobre a passagem do autor pelo hospício. Seus amigos organizaram essa homenagem depois que ele se suicidou. Ele era quem, no consenso médio? Um compositor, letrista de vanguarda, amigo de Caetano, Gil, Gal Costa, ligado ao movimento concretista, que já nos legou notáveis lições de sofrimento. Mas nos seus fragmentos queixumes o que nós vemos é solidão de escritor brasileiro. Uma solidão que conduz ao alcoolismo, às experiências clandestinas, ou para falar simplesmente como uma criança, ao desbunde total. Ele procurou a psiquiatria, quer dizer, o socorro social, e depois se matou por não haver remédio para um desamparo assim descomunal.
Alguma coisa, digo eu, deve estar doente, e não podem ser os doentes, já que estes se manifestam na totalidade de seus sintomas. Ninguém estudou com seriedade o concretismo e em seguida o neoconcretismo; estava ali, afinco, a doença da literatura brasileira, a doença infantil da rebeldia romântica, essa entregue a uma perdição fatal. Não vou sair do jogo: eu, como ninguém, conheço isso. Mas não me agrada perceber que os mortos se redimem na sua mortitude, ou seja, que nós não estamos pensando na posteridade/julgamento, e sim nas múmias. Desde Brás Cubas está posto o dedo na ferida: se você quer ser um escritor brasileiro, a única coisa que pedimos é que você morra; depois, então, levaremos em alta consideração o seu caso. A conseqüência lógica de um tal procedimento seria construirmos algumas pirâmides, e não apenas uma, como fizeram os membros da Academia Brasileira de Letras; haja mortos.
Precisamos, antes, pensar naqueles que estão vivos (e hoje eu posso falar em causa própria, não como pessoa, mas como escritor), e naqueles que ainda aparecerão com uma pergunta embaraçosa: “Céu ainda tem um tracinho em cima?” Toda a corrupção brasileira pode ser estudada a partir de nossa própria literatura; e todo o drama que estou vivendo atualmente se resume no único ódio que jamais tive, e que se dirige justamente aos meus companheiros, à minha própria mãe cujo o nome é Palavra.
Torquato Neto... Tem qualquer coisa a ver com Sousândrade, e também com Théon Spanúdis, que sumiu do mapa assim sem mais nem menos. Era analista de analistas, e apreciador de pintura, e sumiu assim... Enquanto os poetas se reduziam ao vocábulo apenas articulando, os imbecis tomavam conta da ortografia. Um mito daquele tempo era Mário Faustino; ainda hoje há pessoas que o adoram, como se ele fosse uma múmia confortavelmente instalada na sua pirâmide. Mas eu estive com ele uns dias antes de sua trágica morte, e fomos tomar um café, e ele havia cortado o cabelo, estava bonito e disposto a nunca mais pensar em poesia, nem em literatura.
Pretendia fazer uma cobertura jornalística de crise internacional em andamento, que envolvia Havana e Washington. Falei: “Mas... Com esse socialismo que vem vindo aí, que não dá valor à literatura, no qual tudo é propaganda ou não será nada, onde é que nós ficaremos?” Ele respondeu, com sua bela cabeça: “Que é isso, Carlinhos... Gente inteligente feito nós se dá bem em qualquer regime”...
Acontece que eu não queria me dar bem em lugar nenhum; queria apenas o direito de sonhar meus futuros. E então o Mário Faustino, jovem poeta de grande talento, explodiu. Não sobrou nem um pedacinho de osso. Entretanto, os interessados que sobreviveram ignoram que ele morreu com asco de sua razão de ser: a Literatura.
Torquato Neto seria, assim, um escritor malbaratado e na raiz da angústia de vossos filhos está essa ignorância do valor que possuem as palavras. Alguém deve estudar esse problema, e eu não costumo ficar parado quando há problemas a resolver.

(Jornal do Brasil, página 9, 6 de maio de 1974).

3 comentários:

EMERSON ARAÚJO disse...

Pela crônica percebemos, Kenard Kruel, que Torquato continua sendo o nosso mais intenso emblema.

Airton Sampaio disse...

Mais problema q emblema, o Torquato, ainda bem... É q poeta q não traz problema não é nem poeta: é emblema. E, pelo menos na imutável Fazenda Piauí, chega de emblema!

EMERSON ARAÚJO disse...

Sem polemizar, mas Torquato Neto é emblema na medida que é poeta, mesmo com uma produção esfacelada se pôs assim. Quanto a relação dele com a dita Fazenda Piauí foi dolorosa e ninguém toca nisso. Não existe "glamour" em Torquato Neto e sim crises contínuas entre a linguagem e a existência. Inquietações emblemáticas que os críticos e as viúvas não conseguem atingir.