quinta-feira, 22 de julho de 2010

Mário Faustino

Mário Faustino dos Santos e Silva

Lilia Silvestre Chaves

Nascido em outubro, dois dias antes do início da Revolução de Trinta, Mário Faustino morreu prematuramente em 27 de novembro de 1962, um mês depois de completar trinta e dois anos: o avião em que viajava explodiu de encontro às brancas montanhas dos Andes. Em um poema que escreveu ao completar 26 anos – "22-10-56" –, um ano após a publicação de O Homem e sua Hora, o poeta retoma a idéia sugerida no verso de "Sinto que o mês presente me assassina", uma das epígrafes desse estudo, de um signo ameaçando outro signo, numa pré-visão poética do mês de sua própria morte: "outubro outubro ao tempo, ao tempo rubro / donde entre brumas um lacrau se esgueira / e morde o calcanhar do sagitário".

A obra inteira de Mário Faustino é fonte inesgotável de exemplos de premonições dessa morte prematura e aérea – a "morte espacial que me ilumina". Mas uma espécie de lucidez desvairada contida no poema-prefácio de O Homem e sua Hora não apenas reúne presságios de morte e projetos de vida e obra, como também anuncia os temas da poética faustiana, inclusive a mais intensa e pungente alegria de viver e de transviver em busca de um Eros total.

Se dar à vida a dimensão metafórica de um dia inteiro – manhã, tarde e noite – tornou-se um topos da poesia, no poema "Prefácio" de Mário Faustino, a vida inicia e acaba entre aurora e meio-dia, início e fim da manhã. Como acontece com a fotografia, que encerra a morte na imobilidade de uma imagem, o poema, lido depois de passado o tempo e conhecida a história, desvela detalhes não vistos pelos que o leram antes do poeta morrer – a historicidade e a temática do texto impregnam-se dos acontecimentos que o leitor passa a conhecer retrospectivamente da vida do poeta e das imagens que ele deixou de si. O tempo transcorrido e a vertigem do olhar para trás agem com a força de uma contemplação condensada – a palavra contemplação considerada no seu sentido etimológico de "olhar atentamente para" somado ao significado de templum como o espaço quadrado demarcado pelo áugure no céu e no chão, ou ainda, local em cujo interior o sacerdote tomava e interpretava os presságios.2 Os poemas de Mário Faustino delimitam esse espaço de pré-visão e ligam o olhar do poeta ao de um adivinho, na acepção do vate antigo ou do profeta romântico.

Prefácio

Quem fez esta manhã, quem penetrou
À noite os labirintos do tesouro,
Quem fez esta manhã predestinou
Seus temas a paráfrases do touro,
A traduções do cisne: fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais,
Desflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada, onde jamais
Se exaure o deus que muda, que transvive.
Quem fez esta manhã fê-la por ser
Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora.

Um deus à sua maneira, criador d"esta manhã", o poeta entrega-se a ela com o ímpeto do vôo e a dedicação do lutador que investe contra o universo, usando a palavra simultaneamente como arma e oponente, como meio e fim. O gesto a um só tempo divino e predeterminado antecipa a concepção do poeta artesão que Mário Faustino não separa do inspirado, aquele iniciado nos caminhos noturnos do labirinto, cuja entrada simboliza a morte ritual do herói na direção dos mistérios das origens do mundo e do ser. O traço épico já se encontra nesse poema em que o poeta parece ser um misto de Orfeu, de Teseu e do próprio Zeus.

À recorrente imagem do poeta assimilado a Orfeu, Mário soma a metáfora do cisne (o poeta incompreendido) explorada por Mallarmé e Baudelaire e a do touro (o Minotauro do labirinto, o poeta meio touro, meio homem), estendendo-as às metamorfoses de Zeus. Como Zeus – touro e cisne –, seduz Europa e Leda, Mário Faustino vai traduzir animais mitológicos ou não – centauros, leões, unicórnios – a seduções terrenas. Ao retomar o mito, Mário une, no poema, uma práxis sagrada a um fazer poético que se vincula ao profano. Leitor de Homero, Mário Faustino percebe e aceita a essência do mito, mas vai de encontro aos atos e atitudes dos deuses que habitam as páginas do poeta épico grego: um deus, cuja inicial minúscula reivindica o nome comum ao divino que, como o homem, erra, comete atos que o cristianismo chamou de pecado.

Mais que um simples prefácio de uma obra, antecedendo os poemas de O Homem e sua Hora, este é o prelúdio de uma vida, da curta vida de Mário Faustino. Daí a fascinação do que se pode chamar de morte dupla: uma, a que Mário Faustino celebrou de véspera, predestinando-se a si mesmo e ao poema – a morte que viveu interligando amor e vida, unindo os temas em uma trama de obra e existência; a outra morte, a sorrateira, que interrompeu a tessitura antes da hora para provocar o único arremate capaz de estabelecer a unidade do tempo dividido em momentos, da existência dividida no tempo e da obra dividida em fragmentos.

"Existencial narciso" que "se mira nas calendas", Mário Faustino viu-se nesse espelho que a poesia às vezes traz para os grandes, aqueles que sentem o peso e a gravidade dos fragmentos nos quais o trabalho se estira através de sua vida. Para o gênio, diz Walter Benjamim em um fragmento da Rua de mão única,3 intitulado "Relógio normal", "toda e qualquer cesura, os pesados golpes do destino como o suave sono, cai na industriosidade de sua própria oficina de trabalho. E o círculo de sortilégio dela, ele o traça no fragmento". Na última fase de sua poesia, Mário Faustino projetava reunir os poemas-fragmentos que escrevia em longos poemas que seriam publicados de cinco em cinco anos. Morreu dois anos depois da decisão desse projeto.4

A compreensão da durée du temps (duração do tempo) dá um sentido particular à morte entendida como paciência do tempo.5 Se a extensão do poema (e da vida) é confundida com a sua duração, o que importa é a intensidade em que viveu esse tempo e não a quantidade de anos vividos. Se a vida pode coincidir com a obra, Mário Faustino é o poeta por excelência para comprovar essa tese: a extensão do poema teria que ser intensiva, mesmo que fragmentária, comandada pela experiência vivenciada pelo poeta, que luta por "fazer da poesia um equivalente verbal da duração, do tempo real vivido".6

Pode-se dizer de Mário Faustino algo semelhante ao que Kierkegaard teria dito a propósito de Rilke, poeta alemão da linhagem de Mário: ele fez de sua vida uma experiência, um poema/ensaio definido e desejado de existência poética. A vida de Mário Faustino faz integralmente parte de sua obra. Não a explica, identifica-se com ela, permanece uma de suas criações e não a menos interessante. Mário a inventou, tanto quanto pôde, diferente da vida comum, vigiou-a, favoreceu algumas vezes as suas metamorfoses, experimentou-a pisando em atalhos incomuns. No século da máquina, Mário Faustino esforçou-se por se tornar Orfeu, mas um outro Orfeu reinventado e transgressor que garante a imortalidade mesmo quando se vira para trás à busca de uma resposta e de uma presença – não somente pelo traço de "uma lívida ausência sem pecado" mas também por "uma vida toda linguagem" – guiando a si mesmo e ao seu tempo vivido no caminho pelo Hades até o retorno ao mundo, transfigurado em palavra. Mesmo se a figura mediadora baseia-se em mitos gregos, a reinvenção de Mário persegue um outro Orfeu, brasileiro e também reinventado: o de Jorge de Lima. Três vezes simulacro, Mário Faustino constrói sua vida enfrentando o mundo com a tranqüilidade de quem vence "qualquer muro de credo" e ultrapassa "qualquer fosso de sexo", numa época em que essa barreira ainda provocava preconceitos dolorosos, hoje cada vez mais desfeitos.

E é recortando um verso de Invenção de Orfeu de Jorge de Lima, que insisto: Mário se escrevia aquém e além da palavra. Se os temas de sua obra, como diz no poema Prefácio, são pelo próprio poeta predestinados a traduções e paráfrases (o poeta retoma o que é antigo para renovar), seu canto vai se debater entre os mitos que rasura e a vívida e humana experiência que tenta tornar escrita. Predestinado a viver o tempo de duração de uma manhã – talvez o tempo necessário para transviver além do bem e do mal – o poeta abandona-se a mitos essenciais permitindo-se, a exemplo dos deuses, atos humanos e, ao deflorar sua vida-manhã imprime-lhe o seu pecado, fecundando-a com a sua poesia. Dessa luta interior e exterior, jamais exaurido, o homem, pela palavra, constrói a sua vida sem perder de vista a morte, que será sua síntese e seu reinício.

Talvez um outro outubro me descubra
poseidon-perdoado e em paz com minha
terra e meu tempo
então cantarei de outro
outubro e cantarei de mim não mais, de vós
irmãos que vos beijais após o jogo
floral onde meus verbos flor!irão:

o resto –––––––
silêncio
sabereis quando nascer
o fruto cujo sêmen planto agora
na boca duma noite contraurora.

("22-10-1956")


O avião desfez-se na madrugada, antes da luz da aurora, mas nós sabemos desse fruto que o poeta semeou, que cantará nos eternamente na leitura de cada um, de outro outubro de si mesmo.

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1 - No original: In my end is my beginning. Verso dos "Quatro quartetos" de T. S. Eliot.
2 - Junito de Souza Brandão. Mitologia Grega. V.1, p.15.
3 - Walter Benjamin. Rua de mão única. In: ____. Obras Escolhidas v.II. Tradução de Rubens RodriguesT. Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 14.
4 - Sua obra poética constitui-se de um único livro publicado em vida O Homem e sua Hora (Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1955) e dois livros póstumos, A poesia de Mário Faustino (composto de O Homem e sua hora, Esparsos e inéditos I, II, III). Introdução de Benedito Nunes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1966) e Poesia completa, poesia traduzida. (Introdução, organização e notas de Benedito Nunes. São Paulo: Max Limonad, 1985), ambos organizados e prefaciados por um de seus maiores amigos, Benedito Nunes. O crítico e filósofo paraense foi um dos maiores divulgadores tanto da poesia de Mário Faustino, quanto de seus textos críticos publicados entre 1958 e 1959 na página dedicada à poesia do então renovado "Suplemento Dominical" do Jornal do Brasil. Uma grande parte desses escritos críticos foi reunida e editada, também depois de sua morte prematura, em Poesia-Experiência (Organização e Introdução de Benedito Nunes. São Paulo: Perspectiva, 1976) e Evolução da poesia brasileira (Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1993).
5 - Emmanuel Levinas. Dieu, la Mort et le Temps. Établissement du texte, notes et postface de Jacques Rolland. Paris: Bernard Grasset, 1993, p. 16.
6 - Benedito Nunes, Introdução ao fim. In: Albeniza Chaves. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Belém: UFPA, 1986, p. 322.

Lilia Silvestre Chaves - Poeta, professora de Literatura Francesa, autora de ensaios sobre teoria literária e do livro de poemas E todas as orquestras acenderam a lua.

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