sábado, 17 de julho de 2010

Leônidas Mello: Aperturas financeiras

Pedro Freitas: governador do PI (1951 a 1955).

Leônidas de Castro Mello

Em fins de 1942 estava a concluir a construção da casa onde resido ainda hoje, na Avenida Frei Serafim, 1909. O construtor era o engenheiro Cícero Ferraz de Sousa Martins, a quem eu havia pedido que a folha de pagamento semanal não excedesse a dois contos de réis.

Mas, certo dia fui procurado pelo engenheiro que me informou haver chegado do Rio e Paraná o material (portão principal da casa, grades de ferro, e portas) encomendado para pagamento imediato à chegada do mesmo. Eu não dispunha de reserva financeira e não queria pedir dinheiro emprestado ao Banco. A esse tempo só existia em Teresina o Banco do Brasil. Conversei sobre o caso com um amigo íntimo, Aarão Parente, que habitualmente me visitava todas as noites. Disse-lhe que estava a precisar, com urgência, de dez contos de réis e não desejava recorrer ao Banco. Aarão me sugeriu que pedisse o dinheiro ao Sr. Roland Jacob. Ele fazia comumente empréstimos a juros e guardava a devida reserva dessas operações. Aceitei o alvitre e pedi que no dia seguinte mandasse o Sr. Jean Le Lonnés, representante do Sr. Roland, falar-me, em Karnak. Foi a primeira pessoa a quem atendi na manhã seguinte, pois antes de oito horas já chegara. Jean ouviu-me e respondeu solicitamente:

- O senhorrr (era francês e falava português carregando nos rr; não pronunciava o r brando) pode dispor do dinheiro. Sei que o Sr. Roland terá grande prazer em servir ao senhor.

- O senhor não vai ouvir a “seu” Roland?, perguntei.

- Vou, sim. Mas se houver qualquer dificuldade, que sei não haverá, eu próprio arranjarei o dinheiro, das minhas economias.

Telefonei a Aarão, pedi-lhe que preparasse o respectivo documento que assinei no mesmo dia. À tardinha o senhor Jean foi pessoalmente levar-me o dinheiro. O pagamento foi feito no dia do vencimento. Para isso vendi algumas cabeças de gado de uma pequena fazenda (Santa Rita) que possuia em Barras. No ano seguinte a casa estava concluída.

Como tivesse de ir ao Rio quis aproveitar a oportunidade para lá comprar alguns móveis. Lembrei-me de realizar novo empréstimo, de vez que o primeiro, acrescido dos juros, havia sido pago pontualmente. Falei novamente a Aarão e no dia imediato Jean me procurou em Palácio. Não haveria dúvida, ele estava à minhas ordens e tinha, afirmou, grande prazer em servir-me. Espontaneamente acrescentou que não havia necessidade de ocupar o Sr. Roland. Ele próprio me emprestaria o dinheiro. Na tarde do mesmo dia foi levar-me a importância pedida.

Esse novo empréstimo foi, como o primeiro, pago em dia, rigorosamente, acrescido dos juros.

Dois anos depois Getúlio Vargas, presidente da República, foi deposto. Caí com ele. No dia da barulhenta transmissão do Governo a meu substituto tinha em casa apenas quinhentos e poucos mil réis, importância que, nesse tempo, e com economia, daria para um mês de subsistência à família. Mas não me afligi muito porque em minha fazendola, em Barras, podia dispor de umas trinta reses. Escrevi para Barras autorizando a venda das mesmas, mas o cunhado a quem escrevi respondeu-me que não encontrara comprado-res, porém iria matando e vendendo a carne na feira, à medida que o mercado permitisse. Iria “apurando” como chamou ele à essa modalidade de venda, muito lenta, demorada. Os dias se passavam e o aperto crescia. Resolvi, então, mais uma vez, apelar para “seu” Jean e fui pessoalmente à sua residência pedir-lhe um empréstimo de três contos de réis, pelo prazo de 90 dias. Mas, desta vez eu já não era Interventor, era apenas professor do Liceu. Talvez por isso minha pretensão não foi atendida. Jean ouviu-me e respon-deu-me um tanto secamente:

- Dr. Leônidas, desta vez não tenho condições para servi-lo. Não disponho de reservas.

Perguntei-lhe se era possível transmitir meu pedido ao Sr. Roland. Respondeu-me que sim e na manhã seguinte me daria a resposta. Efetivamente manhã cedo me telefonou:

- “Seu” Roland mandava dizer-me não ser possível.

Estava sem possibilidades naquele momento. (“Seu” Roland era arquimilionário). Logo compreendi que as recusas de ambos eram consequência da minha condição de político decaído e sem emprego.

Uns dez dias após às negativas de Jean e Roland deliberei recorrer a outro amigo. Lembrei-me de Pedro Freitas. Sempre fôramos adversários políticos, mas nunca deixamos de ter boas relações particulares. Fui à sua residência. Pedro recebeu-me amavelmente e notei que teve satisfação em servir-me; apenas pediu vinte e quatro horas de prazo. No dia seguinte recebi de sua mão os três contos de réis. Ao deixar a casa de Pedro Freitas sai convencido de que era homem de pouca instrução porém bem educado e de muita sensibilidade moral. O empréstimo foi pago pontualmente.

Nunca esqueci esse favor que me foi prestado em uma das horas difíceis da minha vida.

Devo dizer, com franqueza, que a gratidão que em mim ficou muito contribuiu para que, anos depois, em 1950, eu escolhesse Pedro Freitas para candidato do P.S.D., ao Governo do Estado.

As dificuldades financeiras que passei tão grandes foram que algumas vezes tive de vender objetos de valor estimativo que possuía, por intermédio de parentes ou pessoas amigas que guardavam sigilo para evitar divulgação e comentários. Cito dois exemplos: por intermédio de meu sobrinho Álvaro Mello vendi um relógio Patek Philipp que, quando eu governador, me fora oferecido, como presente de aniversário pelos oficiais da Polícia Militar. Era então seu comandante o cel. Olavo Nogueira. Outro objeto que vendi, com pesar, foi uma chave de ouro maciço, de uns dez centímentros de comprimento, que me fora presenteada em nome de todas as classes sociais - como chave simbólica da cidade - na primeira visita que como Interventor Federal fiz à Parnaíba, onde fui recebido com grandes festas. Pela natureza do objeto, que despertaria curiosidade, não quis vendê-lo em Teresina e confiei a incumbência à uma senhora que viajou para o Rio e lá a vendeu à uma joalheria da Rua Gonçalves Dias - Joalheria Valentim salvo engano.

Minha angústia financeira não se prolongou por muito tempo: Sempre tive amigos dedicados e entre esses estava Ascendino Pinto de Aragão, que além de amigo fora sempre correligionário político, destemido e fiel. Homem pobre, porém, de atitudes desassombradas. Era íntimo de minha casa e sentia no ar as minhas privações e necessidades.

Certo dia Ascendino apareceu cedo, estávamos ainda no café da manhã. Tomou lugar à mesa, puxou o bule, encheu a xícara e foi falando à medida que aos goles, vagarosamente, tomava o café:

- Dr. Leônidas, depois que o senhor deixou o Governo não recebeu qualquer homenagem dos amigos. Hoje à noite queremos vir incorporados cumprir esse dever. O senhor poderá receber-nos às 8 horas?

- Pois não, Ascendino! E com que satisfação!

E acrescentei fazendo humor:

- Você sabe que minha casa é a bastilha que o Rocha Furtado (Governa-dor, adversário) e o velho Eurípides de Aguiar (presidente da U.D.N. e, ao tempo, chefe de Polícia) não conseguem derribar.

- Pois aqui estaremos. Concluiu, Ascendino.

Chegaram, pontualmente, às 8 horas, cerca de uns cincoenta amigos. Minha casa, à noite, era sempre aberta, iluminada, movimentada pela presença de amigos e correligionários. Os que chegaram incorporados, acrescidos dos que haviam chegado antes, formavam grupo numeroso que se espalhou pelo interior e pelo jardim. Eu me sentia confortado e prestigiado e a todos distribuía abraços e amabilidades.

Ascendino falou em nome dos companheiros e em seu curto mas incisivo discurso disse que ali estavam para reafirmar solenemente uma verdade que eu já conhecia: os que ali se encontravam não eram apenas correligio-nárlos politicos, mas também amigos dedicados, solidários comigo em qualquer tempo e em qualquer situação. E perorou pedindo que lhes permi-tisse contribuir com pequeno auxílio financeiro para a educação do meu filho. (Regino, então adolescente). E entregou à minha senhora, presente à reunião, um ramalhete de flores ao qual estava atado um envelope contendo cheque no valor de trinta contos de réis. Agradeci sinceramente emocionado. Desse dinheiro, que me foi imensamente útil, boa parte a despendi com a impressão do jornal do Partido que, dadas as dificuldades surgidas em Teresina, pelo receio de pressão por parte do Governo, teve de ser impresso em Caxias e S. Luís do Maranhão.

Em julho de 1946, já na Interventoria Vitorino Correia fui nomeado para o Tribunal de Contas do Estado e eleito seu presidente.

Passara a crise de aperturas...

Desejo inserir neste capítulo palavras de gratidão ao ex-deputado federal Ezequias Costa que, seis anos depois de encerrada minha vida pública, conhecedor das dificuldades com que me mantinha, conseguiu em 1967 fosse eu admitido como associado do Instituto de Previdência das Congressis-tas do qual passei a receber pensão mensal de quatrocentos e oitenta cruzeiros (Cr$ 480,00) que então representava valioso auxílio. O Instituto fôra fundado em 1953, mas não me foi possível fazer parte do mesmo pois para a admissão teria de pagar jóia no valor de Cr$ 11.500,00 (onze mil e quinhento cruzeiros), importância de que não dispunha. Ezequias propor-cionou-me meios que permitiram a solução satisfatória do caso.

Transcrevo abaixo a carta que me dirigiu a 4 de novembro de 1967:

Caro senador Leônidas Mello

Tenho a grande satisfação de confirmar o deferimento de seu pedido para cujo cumprimento já firmei o contrato de empréstimo. A partir de novembro corrente o senhor passará a receber a pensão mensal de Cr$ 480,00 correspondente ao que tem direito pelos doze anos de mandato.

Houve a dispensa para o seu caso de 50% e tomei o empréstimo da outra parte que será amortizada em 36 prestações de Cr$ 219,20, descontados do valor da pensão. Também ficará sujeito ao desconto mensal de Cr$ 33,60, equivalente a 7% sobre o valor da pensão.

A partir de novembro em curso receberá o saldo no valor de Cr$ 227,00 que será transferido por intermédio da agência do Banco do Brasil, conforme recomendei. Após o desconto das 36 prestações do empréstimo passará a receber o total de pensão, isto é, Cr$ 480,00, descontados apenas os 7%.

Fiquei tão satisfeito quanto o eminente amigo; foi uma homenagem que tive a oportunidade de prestar a um dos maiores piauienses, que admiramos pelo exemplo de cidadão, pela grandeza da vida pública e pela excepcional integridade com que pautou o comportamento.

Meu grande abraço. Aqui continuo a postos. Recomende-me à digna família e abrace o amigo e grande admirador. (Ezequias Costa).”

À Ezequias Costa, a minha imorredora gratidão.

Leônidas de Castro Mello. Trechos do meu caminho, Teresina, Comepi, 1976.

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