sábado, 24 de julho de 2010

Ana, a voz dos Fonteles

Ana Fonteles. Foto divulgação.

A terceira reportagem de Dalwton Moura "Música e Memória" para o jornal "Diário do Nordeste", destaca a cantora Ana Fonteles, piauiense radicada no Ceará, assim como os irmãos músicos Jabuti, Tim e Zezé Fonteles. Ana participou da Massafeira Livre e se tornou um dos nomes mais freqüentes na cena musical de Fortaleza. Gravou um álbum solo com grandes instrumentistas no Rio de Janeiro e deixou inacabado seu segundo disco - que a família promete finalizar e lançar

A cidade piauiense de Parnaíba se destaca historicamente pelo importante papel na economia do estado. Da vila erguida no início do século XVIII, tempos do Porto das Barcas, entreposto da economia do charque, ao cenário mais recente em que a região chegou a responder pela maior parte do imposto sobre comércio arrecadado em todo o Piauí. Atividades resultantes da mesma dádiva: o delta em mar aberto, até hoje responsável pela inclusão do município no mapa do turismo. O mesmo que, desde o século XVI, bem antes da chegada dos bandeirantes paulistas, atrai navegadores para a terra palmilhada pelos Tremembés, índios famosos pela habilidade no nado. E que ainda hoje costumam legar herança a imberbes filhos da terra.

Foi em Parnaíba que a família dos Fonteles Miranda se fixou, chegando do município de Barras de Maratuã, onde se casaram Manuel Aldemar Ferreira Fonteles, hoje aos 82 anos, e Maria do Espírito Santo Miranda, 73. Ele fez carreira no comércio, se aposentando como gerente da loja de departamentos Rose Marie, a maior da cidade. Ela, dona de casa, contou com a ajuda de irmãs para criar nove filhos. Entre eles, Gilberto e Manuel Júnior, que se tornariam conhecidos, na cena musical de Fortaleza, como Jabuti e Tim Fonteles. Entre as irmãs que também pela capital cearense se dedicariam à música, Zezé e Ana Fonteles.

Os Fonteles adotaram Fortaleza e foram por ela adotados, entre o fim dos anos 70 e o início da década seguinte, atraídos pela vontade de continuar os estudos e pela reputação da Universidade Federal do Ceará. 'Viemos gradativamente, quase carreirinha. Alcione veio fazer engenharia, depois Nazaré veio fazer medicina, Zezé veio fazer geologia, Rita fez agronomia... Jabuti é engenheiro químico, e eu fiz engenharia de pesca. O único arrependimento que tenho na vida é de não ter terminado, com seis meses pra acabar". Quem debulha as histórias da família é Tim Fonteles, 46 anos, multiinstrumentista e produtor musical bastante requisitado na capital cearense. Vide os cerca de 60 discos cuja produção levou sua assinatura.

"Alguns irmãos, como o Rômulo e a Tânia, que também canta, vieram mas não quiseram ficar, voltaram pra Parnaíba. O que contou pra vir quase todo mundo foi o estudo, a universidade. Era uma coisa certa na família. Todo mundo que quis estudar teve a mesma chance", destaca Tim, ressaltando a origem do pai, cearense de Acaraú, e se impressionando com a obstinação dispensada à educação dos filhos.

"Francamente, não sei como é que ele conseguia. Ele trabalhava na Rose Marie, que era de um judeu chamado Marc Jacob, mas também sempre foi de olhar pra frente, tinha outras atividades comerciais: armazém, posto de lavagem, posto de gasolina... Sempre gastou só o que podia", pondera Tim. " minha mãe trabalhava em casa: era costureira de mão cheia e chegou a ter um salão de beleza".

Raízes musicais - Já as raízes musicais da família se originam predominantemente no lado materno. "Minha avó materna cantava e tocava, e algumas tias cantavam muito bem. Apesar da gente assinar todos Fonteles, esse lado musical vem dos Miranda", diz Tim, sétimo na ordem dos filhos, terceiro entre os homens. "A Ana era imediatamente acima de mim. Inclusive não gostava que eu dissesse minha idade: "Ô, Tim, não fala a minha idade, que todo mundo sabe que eu sou mais velha do que tu"´.

As lembranças da infância e da adolescência, em tempos de molecada solta pelas ruas de Parnaíba, são as melhores. "O quintal era praticamente a casa inteira, um paraíso. Tinha campo de futebol e um pomar impressionante: dois tipos de laranja, goiaba, três tipos de cajá... Mamão, tamarindo, melancia, feijão na época da chuva...", recorda, entre lembranças de uma Ana Fonteles mais faceira do que danada na juventude.

"Ela era a predileta das tias, que eram verdadeiras mães auxiliares. Tia Rosa, tia Miduda, era um chamego danado com a Ana. E o apelido dela, que todo mundo tinha apelido na família, era "Marion", não sei nem por que. Ela se zangava demais quando alguém chamava´, conta "Joel", ou melhor, Tim, frisando que sempre se deu bem com a irmã. "Fora alguma coisa, um arranca-toco de vez em quando, que todo mundo lá em casa tem a personalidade forte, a gente se entendia. Agora, lá em casa todo mundo foi saindo cedo. Com 17, 18 anos, já tava vindo pra Fortaleza".

Fortaleza e a Massafeira - No apartamento na Rua Assunção, edifício Xenofonte, comprado "a perder de vista" pelo pai, os Fonteles iam, pouco a pouco, aportando em Fortaleza. A maioria um ano antes do vestibular, buscando uma melhor preparação. Caso de Ana Fonteles, que segundo Tim chegou aqui em 78. "Ela veio dois anos antes de mim, que fiz terceiro ano lá em Parnaíba mesmo. Ela estudou ali no Farias Brito perto do Quinto Batalhão. Depois fez Economia, não chegou a trabalhar na área, mas teve o bom senso de acabar o curso. Agora, ela sempre quis se dedicar mesmo foi à música", garante Tim.

Tanto que, com não mais que 20 anos e mesmo recém-chegada, Ana participou de um evento referencial para a história da música cearense. Concebida pelo cantor e compositor Ednardo e por Augusto Pontes, poeta, compositor, publicitário e eterno "guru" da geração do Pessoal do Ceará, a Massafeira Livre reuniu dezenas de artistas de diversas áreas, com destaque para a música popular, em espetáculos no Theatro José de Alencar, de 15 a 18 de março de 1979. E gerou, entre feitos como a "descoberta" de Patativa do Assaré pela capital cearense, frutos como o LP duplo, com 24 faixas, fotografando gerações de músicos que se encontravam no momento. Entre eles, Jabuti, Zezé e Ana Fonteles, que teve destaque no show - cantando "Vidraça", de Calé Alencar, Fausto Nilo e Alano Freitas - e no disco, interpretando, ao lado de Ednardo, "O sol é que é o quente", de Alano. Dele chegou a gravar também a faixa "Tempo ruim", não incluída no álbum.

"Lembro que, quando foram gravar o LP Massafeira no Rio, a Ana tinha voz muito potente e a Zezé, muito colocada. O Toninho Barbosa, que era o técnico, falou: "Zezé engole o microfone e Ana Fonteles vai cantar lá no meio da rua", ri-se Tim Fonteles, creditando à chegada anterior de Jabuti à capital cearense a precoce desenvoltura de Ana na cena musical de Fortaleza.

"Desde cedo ela continuou estudando, mas viu que o que queria mesmo, o que estava no sangue, era cantar. E era uma época muito boa, pra quem fazia música por aqui. Não tinha a massificação do rádio, pra você só ouvir o que tão mandando. A propaganda de música era de boca em boca. Era muito, muito bacana´, ressalta, sem esconder certo saudosismo ao destacar a boa presença de público nos shows de músicos locais.

"Acho que isso começou a mudar a partir de 1985, por ali. Foi caindo, com a massificação das rádios e tudo o mais. Mas até ali era muito bom tocar, fazer show, o público comparecia", acrescenta Tim, citando espaços como a Concha Acústica da UFC, o Teatro Universitário, o Anfiteatro da Volta da Jurema e o Teatro da Emcetur como pontos dessa efervescência sonora.

"Hoje a universidade conseguiu finalmente separar isso. Lembro que eu e Jabuti estudávamos na Tecnologia, mas a gente morria teso era ali nas Humanas. Hoje acabou, não tem show na concha, manifestação, ninguém puxando um violão, nada", lamenta. "Na cidade como um todo, naquela época, não tinha muita música ao vivo nos bares. A gente tocava, mas informalmente, em rodas de violão, em lugares como o Gourmet das Arabias, na Beira-mar, um grande ponto de encontro no início dos anos 80. Mas não era uma coisa profissional, a música ao vivo como hoje. Isso favorecia que o artista buscasse fazer shows".

O cantor e produtor cultural Ricardo Black recorda a chegada dos Fonteles a Fortaleza. "Conheci todos eles nos lugares de música. Era tiete do Jabuti, achava fantástico, genial, ter uma família cantante. Eram poucas por aqui", ressalta Black. "Os Fonteles foram super adotados pela cidade, até hoje são pessoas que consideramos como nascidas aqui. E pra mim a Ana era a mais brilhante dos Fonteles. Sempre fui um fã dela, sempre admirei a forma de ela interpretar. Era uma grande intérprete, e em pouco tempo se tornou a queridinha da turma toda".

Fonte: Dalwton Moura / Diário do Nordeste

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