domingo, 19 de julho de 2009

A recepção da literatura piauiense (1900-1930)

Socorro Magalhães. Foto sem crédito.

O incremento da pesquisa científica, graças ao fortalecimento dos programas de pós-graduação em todo o país e também em nosso estado, produziu um considerável volume de trabalhos que vêm colaborando na recuperação da memória cultural do Piauí. Atualmente, não mais se põe em dúvida a existência de uma literatura piauiense, reconhecendo-se um conjunto notável de autores e obras, bem como a existência de um público de leitores e de uma crítica literária, instâncias indispensáveis ao enraizamento social de uma literatura.

Autora de uma tese de doutorado, defendida na PUC-RS, intitulada Horizontes de Leitura e Crítica Literária: a recepção da literatura piauiense (1900-1930), a Professora Maria do Socorro Rios Magalhães afirma que o período de 1900 a 1930 constitui o momento decisivo na formação do sistema literário piauiense e que “somente a partir de circunstâncias favoráveis, como a melhoria da escola, o desenvolvimento da imprensa e a instalação das primeiras tipografias em Teresina, tornou-se possível o funcionamento de um sistema literário, nos moldes preconizados por Antonio Candido, autor do clássico A formação da literatura brasileira: momentos decisivos, onde aponta a tríade autor-obra-leitor como indispensável à formação de uma literatura propriamente dita, ou seja, um sistema literário”.

Ainda segundo a Professora Socorro Magalhães, as primeiras produções literárias consideradas como literatura piauiense datam dos primórdios do século XIX, com o aparecimento de obras esparsas, produzidas e publicadas fora do Piauí e até mesmo fora do Brasil. Os historiadores da literatura piauiense divergem ao apontar autores e obras que marcariam a origem dessa literatura, uns apontam Ovídio Saraiva, com Poemas, livro publicado em Coimbra, em 1808; outros defendem que a literatura piauiense começa com a publicação de A criação universal, de Leonardo Castelo Branco, impresso no Rio de Janeiro, no ano 1856, período em que o poeta viveu naquela cidade; para outros, Flores da noite, de Licurgo de Paiva, publicado na cidade do Recife, em 1866 seria a obra inicial da literatura piauiense; há ainda os que afirmam a primazia de Impressões e gemidos, obra póstuma de José Coriolano, publicada em 1870, por intervenção de amigos, que reuniram trabalhos do poeta, escritos na década anterior, quando acadêmico de Direito na cidade do Recife.

Na sua tese de doutorado, Socorro Magalhães lembra que os sujeitos dessa produção literária, embora nascidos no Piauí, radicaram-se, de forma permanente ou temporária, em outros centros, onde encontraram condições favoráveis à edição de suas obras, o que não era, naquele momento, possível em sua terra natal.

“As obras desses autores permanecem, em grande parte, desconhecidas do leitor contemporâneo. Dessas, apenas Poemas, de Ovídio Saraiva, teve uma segunda edição, graças a um projeto financiado pelo CNPq e executado por um grupo de professores do Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí”, diz a professora.

Na realidade, a maior parte da produção literária de autores piauienses do século XIX encontra-se dispersa em periódicos. Ainda conforme a pesquisadora, “dentre aqueles que chegaram a publicar em livros, raros foram reeditados, com exceção de dois autores muito populares, cultores da chamada poesia sertaneja, cujos versos foram transmitidos oralmente por várias gerações de piauienses. Trata-se das obras Lira sertaneja, de Hermínio Castelo Branco e A harpa do caçador, de Teodoro Castelo Branco, que tiveram reedições patrocinadas por órgãos culturais do Governo do Estado do Piauí e do Município de Teresina, em tempos recentes, mais precisamente, nos anos de 1988, o primeiro e 1996, o segundo. Sobre A harpa do caçador, até a recente segunda edição, além dos versos preservados pela memória popular, só havia o registro de Clodoaldo Freitas em Vultos Piauienses: apontamentos biográficos, de 1903.”

Seguindo a classificação de Antonio Candido, Socorro Magalhães prefere chamar as obras de autores piauienses datadas do século XIX de manifestações literárias. Essas obras são fruto do gênio, do talento individual dos escritores, mas não mantém entre si qualquer relação de continuidade, condição indispensável para a criação de uma tradição literária, no sentido que Antonio Candido confere a esse termo.

“Só a partir das primeiras décadas dos novecentos, é que o Piauí começou a contar com um razoável número de autores reunidos, de forma consciente, em torno do projeto de construção de uma literatura piauiense”, diz a Professora Socorro Magalhães.

Por sua vocação agro-pastoril, o Piauí manteve, até a entrada do século XX, uma população rural, formada, na sua maioria, por vaqueiros e lavradores. A emergência de uma classe média, urbana e letrada, apta a consumir bens culturais mais sofisticados só veio a ocorrer após a implantação da República, a partir das mudanças promovidas ao longo dos primeiros governos, sobretudo no que se refere à educação.

Só a partir da consolidação de instituições basilares para o desenvolvimento sociocultural, como escola, imprensa, produção literária e aparelho tipográfico tornou-se possível a existência de um sistema literário. No Piauí, a convergência dessas instâncias permitiu não apenas a habilitação dos indivíduos para o exercício da leitura e da escrita, mas também concedeu viabilidade material à literatura, criou mecanismos de incentivo à prática de leitura e à divulgação de obras literárias, possibilitando a constituição de um público de leitores para a recepção da literatura piauiense, que começava a ser projetada.

Segundo a Professora Socorro Magalhães, o sistema literário piauiense passou a funcionar, a partir do momento em que intelectuais integrados à vida cultural do Estado, se reuniram com a intenção de criar uma literatura de expressão piauiense. São estes os mesmos que passaram a fazer a crítica literária através da imprensa, o que possibilitou a divulgação das obras para um público maior. Surgiram, nesse período, acirradas polêmicas entre autores e críticos, empolgando os leitores de jornal. As tipografias começaram a imprimir além de livros, revistas literárias, ampliando os suportes de leitura literária. O movimento cultural do Estado cresceu, e os literatos locais passaram a alimentar o desejo de construção de uma identidade literária para o Piauí, um sonho que encontrou na fundação da Academia Piauiense de Letras, em 1917, a sua maior realização. Entre os artífices do nosso sistema literário, a professora aponta vários nomes, abrangendo, pelo menos, duas gerações de piauienses que, no começo do século XX, assumiram a tarefa de criar, organizar e divulgar, tanto as obras, como a crítica referente a essa literatura. A título de exemplo, podem ser citados: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha, Arimatéa Tito, João Pinheiro, Cristino Castelo Branco, Antônio Chaves, Fenelon Castelo Branco, Corinto Andrade, Antônio Bona, Matias Olímpio, Alfredo Castro, Jônatas Batista, Esmaragdo de Freitas, Celso Pinheiro, Zito Batista, Alcides Freitas e Lucídio Freitas e ainda muitos outros.

Quanto às obras produzidas no período de iniciação da literatura piauiense como sistema, em sua tese de doutorado, a Profa. Socorro Magalhães analisou a recepção pela crítica, de dez livros, abrangendo poesia, romance e conto. São os seguintes: Solar dos sonhos, de João Pinheiro; Almas irmãs, de Antônio Chaves, Celso Pinheiro e Zito Batista, Sincelos, de Jônatas Batista; Ode a Satã, de Adalberto Peregrino; Nebulosas, de Antônio Chaves; Um manicaca, de Abdias Neves; À-toa: aspectos piauienses e Fogo de palha, de João Pinheiro.

Socorro Magalhães faz, contudo, uma ressalva importante: autores piauienses continuaram publicando suas obras fora do Estado, durante todo o século XX, mesmo aqueles que mantinham relações próximas com o movimento literário local, como Félix Pacheco, Amélia Beviláqua e Da Costa e Silva, este último o poeta mais conhecido e mais admirado do público piauiense até os dias de hoje e cuja obra abrange as três primeiras décadas do século XX, começando em 1908, com Sangue, prossegue com Zodíaco e Verharen em 1917, com Pandora em 1919, culminando com Verônica, em 1927.

*Maria do Socorro Rios Magalhães
Doutora em Letras pela PUC-RS
Professora do Mestrado em Letras da UFPI
Professora Adjunta de Letras da UESPI

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