Machado de Assis.
Wanderson Lima*
1 - O conceito de "Literatura Piauiense", que emerge por volta da segunda metade do século XIX, não descreve uma realidade ontológica, mas funda uma "formação discursiva, na acepção de Michael Foucault, que tem, pelo menos, dois objetivos evidentes: compensar o esquecimento dos autores piauiense no quadro da literatura nacional e delegar poder e prestígio àqueles que atuam nesta formação.
Assim, não se pode separar a criação deste conceito do quadro de interesses e jogos do poder que marcam nossa sociedade, nossa elite cultural em especial, desde a emergência do conceito, no século XIX, até os dias atuais.
2 - O problema é que este conceito, que emergiu a apartir de um dado momento histórico, foi naturalizado. Tornou-se um "mito" na acepção de Roland Barthes: uma operação estratégica de naturalização de uma realidade histórica em Natureza. Dessa forma, fala-se de literatura piauiense como se esta noção existisse desde sempre e como se não se pudesse analisar a produção literárias de autores do Piauí a partir de outros parâmetros.
3 - Quando se diz "Literatura Piauiense" circunscreve-se uma noção artística (literatura) a uma realidade geográfica (piauiense). Mas arte nenhuma é determinada por fronteiras geográficas; o surrealismo pode ter surgido na França, mas não é uma "arte francesa". Octávio Paz disse: "O nacionalismo não é só uma aberração moral; é também uma falácia estética."
4 - Falar de "Literatura Piauiense, para além do mal-estar que é fundir uma noção estética a uma geográfica, supõe que há uma essência do ethos piauiense para que esta literatura deva representar. On de está esta suposta "piauiensidade"? Não digo, como já ouvi, que o piauiense não tenha uma identidade (o que seria uma aberração), mas esta identidade é mais rica, híbrida e complexa do que comumente se supõe, e não se resume a traços regionalistas (cajuína, bumba-meu-boi, cabeça-de-cuia). O discurso regionalista, em arte e em política, é quase sempre a expressão de um saudosismo conservador, inóculo como plataforma de resistênciaaos efeitos nocivos da globalização.
5 - O que é autor da Literatura Piauiense? Creio que há duas respostas básicas para esta pergunta. A primeira, e mais ingênua, seria responder, pura e simplismente: é um autor que nasceu no Piauí. Neste caso, Hardi Filho e Rubervam du Nascimento simplesmente não fariam parte da Literatura Piauiense. A segunda seria dizer: é aquele que se ocupa de tradições culturais e questões sociais que dizem respeito ao Piauí. Neste caso, Mário Faustino e qualquer outro poeta medidativo e metafísco não fariam parte do conceito; mais estranho ainda Elio Ferreira, quando escreve uma obra sobre o massacre do Eldorado Carajás, passaria, nesta lógica, a fazer parte da Literatura Paraense. Aqui se desvela um pressuposto repressivo que está na base de um conceito de literatura estadual; reduzir a obra literária a uma dimensão meramente documental; no nosso caso, conceituar Literatura Piauiense como aquela que "documenta" a realidade do Piauí.
6 - Em 1873, Machado de Assis já criticava o "nacionalismo de vocabulário" - que nós adaptaríamos para o "regionalismo de vocabulário" - e se punha contra aqueles que só reconheciam "o espírito nacional nas obras que tratam de assunto local". Dizia ele: "O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço"; O compromisso do escritor com sua época e sua nacão, pensava Machado, não pode ser assimilado à idéia repressora de ter que se limitar à tematização de questões locais e contemporâneas. O afastamento de uma bordagem direta das questões locais pode ser uma estratégica de uma crítica talvez mais refinada aos dilemas daquele local. Como muitas outras sugestões de Machado, esta ainda precisa ser meditada suficientemente, em especial pelos nacionalistas e regionalistas.
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