sábado, 24 de janeiro de 2009

Solar da Fossa

No livro as histórias do Solar da Fossa,
que nos anos 60 reuniu artistas
como Caetano e Torquato Neto (foto).


O time de moradores era da pesada. Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Zé Kéti, Torquato Neto e Paulo Coelho passaram por lá, em diferentes épocas, quando apenas sonhavam em ser famosos. Tim Maia foi um dos últimos a deixar o lugar. As atrizes Darlene Glória, Betty Faria e Tania Scherr disputavam o título de a mais bonita do lugar. De 1964 a 1971, o Solar da Fossa funcionou em uma antiga fazenda construída no século 18 e transformada em um conjunto de apartamentos no limite entre os bairros de Botafogo e Copacabana, na zona sul do Rio. Hoje, no lugar, está o Shopping Rio Sul. Os aluguéis baixos e a falta total de burocracia - bastava pagar um mês adiantado para conseguir um conjugado - atraíam jovens talentosos, porém com pouco ou nenhum dinheiro, naqueles agitados anos 60, em plena ditadura militar.

As histórias da pensão e de seus personagens estão no livro Solar da Fossa, Rio - 1964-1971, que o jornalista Toninho Vaz, autor das biografias de Torquato Neto e do poeta Paulo Leminski, lança ainda no primeiro semestre deste ano pela Editora Record. Toninho entrevistou 78 pessoas durante dois anos. Dos personagens notórios aos empregados mais modestos, passando por travestis e estudantes, ele reuniu depoimentos que ilustram a criatividade daquela tribo. "Se havia um terremoto cultural acontecendo na Cidade Maravilhosa, o Solar era o epicentro", conta Toninho Vaz.

Foi lá que Caetano compôs sua primeira canção tropicalista, Paisagem Útil. O primeiro a ouvir a música, completamente inusitada para a época, foi seu vizinho do quarto da frente, o jovem sambista Paulinho da Viola. "A turma de 1966 foi a mais criativa. Reunia Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Abel Silva. Eles criaram a fama do Solar. Caetano compôs ali Alegria, Alegria", afirma Vaz. Paulinho da Viola usou um dos portais do Solar para a capa de um disco, de 1971. Foi no Solar também, em uma festa, que Chico Buarque e Marieta Severo tiveram um dos primeiros encontros.

Nas varandas do Solar a atriz Maria Gladys, a Lucivone da novela Negócio da China, desfilava nua, "dirigida" por Kléber Santos. "Ela corria pelada para se desinibir. Era laboratório de teatro", diz Vaz no livro.

Até a administradora da pensão, dona Jurema Romão Cavalcanti, parecia saída de um filme. Com seus cabelos oxigenados, como narra Caetano Veloso em seu livro Verdade Tropical, de vez em quando fumava charuto atrás do balcão da recepção. "Ela está com falhas na memória, mas lembra muito bem do Tim Maia chegando de manhã cedo à pensão trazendo pão e sardinha para os dois comerem juntinhos."

Toninho Vaz acredita que o que fez tantos artistas procurarem o Solar foi a própria natureza do negócio. "Aquilo era uma tramoia do dono do posto de gasolina da esquina, Frederico Mello, que tinha sublocado o imóvel em regime de comodato. Para ganhar um dinheiro, ele criou a Pensão Santa Teresinha, que ficou conhecida depois por Solar da Fossa, nome dado pelo Fernando Pamplona (ex-carnavalesco do Salgueiro)", lembra Vaz.

Eram 85 apartamentos, de um, dois ou três quartos. Alguns sem banheiro. O esquema era parecido com o dos modernos apart-hotéis. Funcionários arrumavam o quarto e lavavam as roupas dos inquilinos. "O Solar era uma grande mistura. Tinha prostituta, travesti, bancário, artista, estudante."

O astral começou a mudar na noite do AI-5, decretado pelo governo militar em 13 de dezembro de 1968. Quatro pessoas procuradas pelo Dops viveram ali nos anos de chumbo, entre elas o músico Ricardo Villas, que em 1969 estava na lista dos guerrilheiros trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick. Vários moradores enterraram numa grande vala no jardim livros de Engels e Marx. Quando o Solar foi demolido, em 1972, alguns lembraram do sepultamento dos livros. "O enterro foi, para muitos moradores, uma espécie de semente equivocada. Em cima das melhores ideias socialistas surgiu o símbolo máximo do capitalismo", brinca Vaz. Mas, agora, com o livro, o Solar entra definitivamente para a história da cidade do Rio.

Márcia Vieira, Estadão, sábado, 24 de Janeiro.

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