Kenard: esta foto minha foi tirada pelo Noronha no mesmo dia em que tirou a foto do Torquato com a Barradinha na página 42 do teu livro.
Edmar Oliveira
Caro Kenard,
Tem todo o mérito fazer um trabalho de ajuntamento, como o que você fez, a respeito do poeta. Mas também é perigoso. A pesquisa com a memória oral das pessoas pode fazer uma confusão de versões. E todas as versões são necessárias para a compreensão, mas não é o fato. Não gosto de falar muito deste período, até porque já tem muitos donos da versão cunhada como a verdadeira. Mas muita coisa que li no seu ajuntamento não faz sentido em minha memória (ou na minha versão). Mas já que você contemplou versões tão diferentes da minha, me sinto na obrigação de contar algumas coisinhas, tão diferentes das versões que tomei conhecimento no teu trabalho.
Estive com Torquato apenas em duas ocasiões, mas de maneira muito intensa, até porque foi uma experiência da qual eu tinha consciência da importância. Conheci o poeta em 1971, no mês de janeiro. O primeiro contato está bem documentado na entrevista que ele deu para a Página “Comunicação” que tínhamos no jornal “Opinião”, que você reproduz na íntegra. (Inclusive aquele editorial que fiz com o Durvalino, anunciando a “morte” da folha). Rememorando: Eu, o poeta Durvalino Couto e o jornalista Paulo José Cunha, tínhamos um suplemento literário no jornal “Opinião”. Paulo nesta época estava em Brasília e, como era primo de Torquato, intermediou uma entrevista que fizemos com Torquato para o jornal. Torquato gostou da entrevista pelo nível de informações que tínhamos. Daí começou uma amizade. Quase todo dia daquele mês conversávamos e tirávamos do poeta Torquato informações preciosas para nós.
No outro ano, em 1972, Torquato volta a Teresina e passamos uma temporada juntos. Aí nosso grupo já era maior, tínhamos feito o jornal mimeografado “O GRAMMA”, e depois alguns trabalhos em suplementos literários em vários jornais. Carlos Galvão, Haroldo Barradas, Arnaldo Albuquerque, Chico Pereira, Etim, com Durvalino, Paulo e eu formamos um grupo que as pessoas conheciam com “Grupo GRAMMA”, por causa do jornal, que de certa forma nos deu identidade (embora só tenha saído dois números). Desta feita foi feito o filme “Adão e Eva” (que relato os detalhes mais embaixo, que em muitos aspectos, é completamente diferente das versões no seu livro), e o “Terror da Vermelha”, filme super 8 em que toda a turma aparece. Neste filme Torquato faz um desfile de seus fantasmas nos colocando para ajudar a contar a história. Muito me honra ter sido seu alter ego. E tem a cena em que o personagem Torquato mata o Torquato real. Absolutamente genial no que o anjo torto enunciava e que não foi percebido por nenhum de nós naquele momento. Portanto uma correção para página 63 do seu livro: no “Terror da Vermelha” o ator principal é Edmar e não Torquato. Torquato foi o genial diretor, roteirista e contador de sua história. Enquanto grupo tivemos uma identificação e admiração respeitosa muito intensa com o poeta. Só recentemente, lendo cartas que ele enviou ao artista plástico Hélio Oiticica na ocasião, tomei conhecimento que ele nos elogiava enquanto grupo cultural chamando carinhosamente de “meninos do Piauí”. Estas cartas estão publicadas na excelente coletânea de dois volumes chamada Torquatália, organizada por Paulo Roberto Pires. Aliás, para os piauienses que querem conhecer Torquato, não é preciso fazer entrevista com ninguém, basta conhecer Torquatália, esmerada coletânea em dois tomos: no primeiro volume toda a produção publicada. No outro as reflexões pessoais e textos inéditos que se confrontavam com a realidade do que era publicado. O fio condutor fica com o leitor comparando os textos e as datas. Obra definitiva ao meu ver, mas muito pouco conhecida.
Muito mal contada no seu livro, na minha versão, mas que pode ser comparada a outras versões, para que possamos ficar perto do fato, é a história de “Adão e Eva”. Não só no seu livro, mas outro dia assisti a uma declaração do professor Edward (é este mesmo o nome?), considerado um grande entendido sobre Torquato, da qual também discordo.
“Adão e Eva” foi concebido num contexto de época que foi revelado por Torquato Neto na sua coluna Geléia Geral. O Super8 era um produto privativo da Kodak, mas muito barato para fazer cinema na época. Um cartucho tinha três minutos e era um filme positivo processado depois só pela Kodak. A burguesia usava o Super8 para filmar batizado, casamento, festa de quinze anos e viagens em férias. Era muito tentador colocar esta tecnologia barata para “fazer cinema de ficção”. Em 1972 Torquato veio a Teresina em férias e tinha acabado de fazer o Nosferato com o Ivan Cardoso, no Rio. O Noronha adquiriu três rolos de Super8 e conseguiu a câmera (era barato pra burguesia, pra nós era caro). Íamos propor ao Torquato ser ator de um filme nosso (olhe só a pretensão daqueles meninos!). Noronha entrou como produtor, eu tinha um roteiro (muito besta) chamado “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”, que foi escolhido por ser possível de preencher os nove minutos dos três rolos. Para isto, eu e Carlos Galvão varamos a noite milimetrando as cenas do roteiro para caber exatamente no tamanho da fita e não desperdiçar recursos na montagem. Arnaldo, um excelente desenhista e fotógrafo, foi convocado para ser o câmera. A Carlos Galvão coube a direção. Noronha era o produtor. Mas, na verdade, foi todo um trabalho coletivo de todos nós. Lembro que tive a idéia de colocar um vidro grande entre a câmera e a cena de começo, para que no vidro fosse escrito o letreiro (para aparecer como escrito na película!). Também me lembro que a idéia para uma costela de boi ser a costela de Adão me ocorreu lembrando minha infância em Codó, Maranhão: o circo que andava pelo interior tinha duas partes: a comum com palhaço, malabaristas e trapezista; depois a séria onde tinha um “drama”. No drama “Coração Materno” de Vicente Celestino, o coração de boi foi guardado na geladeira de minha casa para ser usado à noite. Perguntei ao diretor porque um coração tão grande. Ele me disse que em cena ele ficaria pequeno e obteria o efeito desejado. Na costela do Adão também (e depois no super8 Coração Materno). A cena em que a Eva nasce da costela jogada na água do Poti só foi possível pela genialidade de Arnaldo que, depois daí, virou o gênio do Super8 (há uma cena em Porenquanto, de Carlos Galvão, que supera todas...). Galvão dirigiu as cenas muito bem, não só na organização cênica como na duração, para que coubessem no tamanho da fita. Torquato se deixou filmar sem interferir em nada. O resultado deste primeiro filme eu acho muito bom. Pena que o filme se perdeu. Noronha mandou fazer uma cópia e o filme se perdeu... O fato se perdeu e as versões se multiplicaram...
Já que falamos de um filme que se perdeu, falo de outro. Muita confusão se fez em torno deste outro filme que também se perdeu: Coração Materno era uma idéia fixa minha desde o tempo do drama assistido em Codó, que relato acima. O filme “Coração Materno” é meu e do Durvalino. Cronometramos a versão de Caetano para o clássico “Coração Materno”, de Vicente Celestino. Dava exatamente três minutos, o que correspondia a UM ROLO! Pierre Baino fez o Campônio, France fez a Amada e, uma garota que não me lembro, fez a Mãezinha. O filme era cheio de palavras destaque, copiadas do FA-TAL, show de Gal, dirigido por Walli Salomão. Tinha a “Mãezinha” morta e sangrando o coração. Baiano atravessando a cidade correndo com o coração nas mãos para entregar a Amada e acabam comendo o coração num restaurante, onde a santa ceia está na parede com o letreiro “ambiente familiar”. Após assistirmos à primeira e única apresentação do filme, eu e Durvalino fomos ao Gelatti tomar umas cervejas. O filme ficou no chão e o cachorro da casa do Durvalino mastigou o rolo que era de plástico. Fim precoce do filme. Haroldo Barradas recuperou algumas cenas deste original e montou o seu maravilhoso “Coração Materno”, com Pereira no papel que foi do Baiano e a linda diluição da cena final com o sangue do coração sendo lavado pela mangueira do jardineiro da Praça da Bandeira... Este foi o Coração Materno 2.
Estas duas histórias de filmes que se perderam mostram o nosso fascínio pelo Super8. O som era colocado na vitrola na hora da exibição. O Super8 não tinha trilha sonora. Hoje, com a tecnologia disponível, em câmeras digitais, aquilo parece coisa de criança. Me orgulho muito de ter sido uma dessas crianças... Saudações Edmar Oliveira
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