Carica feita pelo genial Fraga
Maria Salomé da Cunha Araújo, dona Salomé, católica fervorosa, professora primária, nasceu, em Teresina, a 4 de junho de 1918, e faleceu, em Teresina, a 10 de março de 1993. Filha de Torquato Pereira de Araújo (chefe da Casa Militar de Leônidas Melo - 1935 a 1945) e de Maria Assumpção da Cunha Araújo, dona Sazinha. O casal teve, ainda, Maria Magdalena da Cunha (casada com Antônio Nonato da Cunha, ambos falecidos), Jesus da Cunha Araújo (falecido, casado com Mirtes Batista Araújo), José Torquato de Araújo (falecido - casado com Belinha Barros de Araújo), Maria Cleófas da Cunha Araújo (falecida, casada com Antônio Neto), Yara Araújo da Cunha (casada com Paulo Francisco da Rocha Cunha, falecido), Carmen Célia Araújo da Trindade (casada com Rubem Trindade), Isabel Marlene de Araújo Mendes (casada com Francisco das Chagas Mendes), Auréa Dulce Araújo de Sousa Lima (casada com João de Sousa Lima), Delfino Vital da Cunha Araújo (falecido, foi casado com Ledíce Teixeira, depois Ademildes e Izabel Ferreira), Adélia Araújo Almeida (casada com Francisco Alves de Almeida) Ernani da Cunha Araújo (falecido, casado com Maria Vitória Véras Araújo), e Zélia da Cunha Araújo (falecida com apenas um ano de idade).
Heli da Rocha Nunes, espírita, maçom e defensor público, nasceu na Fazenda Puça (Jerumenha - com o desmembramento, hoje no município de Elizeu Martins), a 22 de setembro de 1918, e faleceu, em Teresina, a 27 de setembro de 2010. Filho de Aurino da Rocha Nunes, fazendeiro e jornalista, e de Rosa Pereira Nunes. O casal teve, ainda, Neli da Rocha Nunes (casada com Nilo de Castro Soares, ambos falecidos), Aroly Nunes Figueiredo (divorciada de Lourival Figueiredo), Maria Amélia (falecida), Amália da Rocha Nunes (falecida precocemente), Carolina da Rocha Nunes (falecida), Oadi da Rocha Nunes (falecido) e Amália da Rocha Nunes Guimarães (divorciada de Francisco Almeida Guimarães). Casou-se, depois, com Maria Baldoíno de Barros (dona Cota), com quem teve Maria Teresinha Nunes de Barros (casada com Helvídio Nunes de Barros, ex-governador, falecido), Aurino Nunes Filho (casado com Lúcia Nunes), Jonathas de Barros Nunes, (casado com Maria Helena Madeira Nunes, falecida), José Ribamar de Barros Nunes (casado com Ana Maria, e, depois, com Maria de Jesus), Aurimar de Barros Nunes (casado com Chaime Narita Nunes), Nelson de Barros Nunes (falecido, casado com Maria de Jesus Nunes).
O casamento de Heli com Salomé, realizado a 13 de dezembro de 1943, não se deu de maneira fácil. “O tenente-coronel Torquato Pereira de Araújo não dava a filha para quem não pudesse sustentá-la decentemente. Quando a pedi pela primeira vez, ela fazia o Curso Pedagógico na antiga Escola Normal e eu era também estudante, sem emprego garantido. Na segunda vez, ouvi outro sonoro não porque, embora já com emprego fixo, ganhava pouco. Fugí com Salomé e consumei o fato, para desespero da família dela. O jeito, então, foi casar”, recorda sorrindo Dr. Heli Nunes.
Cerimônia na Igreja. Dona Salomé entrou toda de branco. Dr. Heli Nunes, de terno escuro. Houve recepção na casa do casal Otília e Aristides Cunha (ambos já falecidos). Depois, no Hotel São José, na Rua Paissandu, por conta dos amigos, foi oferecida uma potentosa recepção.
Foram morar na Rua Félix Pachêco (antiga Rua São José). Para “segurar” a gravidez, dona Salomé tomava uma série de remédios, sob prescrição médica. Um desses remédios, ministrado de forma errada, provocou o nascimento prematuro (seis meses) e a morte da criança, que se fosse menina se chamaria Rosa Pereira, como a mãe de Dr. Heli Nunes. Os médicos a aconselharam a não engravidar mais, pois correria risco de vida, mas como queria um filho a todo custo, pagou para ver.
O escorpião Torquato Pereira de Araújo Neto, a fórceps, veio ao mundo às 16 horas e 48 minutos do dia 9 de novembro de 1944, uma quinta-feira com o céu todo azul e sol a pino, na Clínica Obstetra localizada no segundo pavimento do Hospital Getúlio Vargas, em Teresina. Os médicos Antônio Maria de Resende Corrêa Agenor Barbosa de Almeida, (ambos falecidos), fizeram o parto, auxiliados por Henriqueta Silva (uma das primeiras enfermeiras a exercer a profissão em Teresina. Aos 101 anos, lúcida, dona Henriqueta reside na Rua São Pedro, 1340 - Centro, próximo ao Centro Artesanal Mestre Dezinho). A Clínica era chefiada pelo médico João Emílio Falcão Costa, tendo como assistente o Dr. Urçulino de Sousa Martins. O HGV prestou este serviço até 25 de maio de 1953, quando foi instalada a Maternidade São Vicente, na Rua 24 de janeiro, 152. Torquato Neto teve como padrinhos Antônio Nonato da Cunha (bacharel em Direito, ex-diretor Regional da ECT, secretário de Governo - por algum tempo - no primeiro mandato do governador Alberto Silva - 1971 a 1975-, presidente do Conselho de Administração do Estado do Piauí, assessor parlamentar da governadoria por vários governos) e sua filha Niolena Maria de Araujo Cunha (ambos já falecidos).
Logo em seguida, o casal fixou residência na Rua São João (antiga Pacatuba). Mudando após para a Rua Sete de Setembro (antiga Miguel Couto), Rua Coelho de Resende, 249, Sul, onde o corpo de Torquato Neto foi velado, e, por fim, na Rua Visconde da Parnaíba, 1618. Com o falecimento de dona Salomé - 10 de março de 1993, Dr. Heli Nunes mudou-se para Picos, morando, inicialmente, na quadra 3, casa 13, do condomínio Petrônio Portella, Bairro Paraibinha. Distante a 30 Km da cidade, Dr. Heli Nunes mantinha uma propriedade com várias crianças adotadas. Uma delas, por sinal, afirmava, convicto, ser a reencarnação de Torquato Neto. Trata-se de Sidney, atualmente com 24 anos de idade.
Estando um dia em casa, deitado, Dr. Heli Nunes recebeu a “visita” de Torquato Neto, que vinha avisá-lo de que iria reencarnar, bem como procurasse acompanhar a gravidez da tia Ana Cláudia (“Ora, Ana Cláudia tinha feito uma ecografia que dava menina, mas nasceu menino. Não posso duvidar que foi coisa do meu filho, por isso pedi para adotar a criança dando-lhe todo conforto e carinho”, relata Dr. Heli Nunes, em depoimento ao autor).
Voltando ao tema reencarnação: José Geraldo Couto, da Folha de São Paulo, assim descreve uma conversa que teve com Dr. Heli Nunes: “Para muita gente Torquato Neto está vivo. Mas o pai do poeta, o defensor público aposentado Heli da Rocha Nunes, 75, parece ser o único a dar à frase um sentido literal. Em entrevista concedida à Folha por telefone, de Teresina, ele se disse convencido de que o filho reencarnou num menino da cidade, hoje com 2 anos.
Com uma voz serena e amável, Dr. Heli explicou sua convicção: ‘Há uns três anos, eu estava deitado aqui em casa e ouvi a voz de Torquato: ‘Papai eu vou reencarnar’. E eu lhe disse: ‘Meu filho, não reencarne lá (no Rio), longe de sua família, nem numa casa como a nossa, que não tenha condições econômicas de amparar seu talento. Reencarne na casa de fulana, que tem boa situação e é muito boa’. Ele não disse mais nada. Dias depois fui na casa de fulana, e disse à filha dela, casada havia pouco, que ela ia ter um filho. Dito e feito: foram examinar, ela estava grávida. É esse menino que, segundo acredito, é Torquato reencarnado’.
O restante da família não acredita no Dr. Heli: ‘Eles são católicos, só eu que sou espírita’, diz ele, com certa amargura. Mas sua voz recupera a doçura quando fala do filho morto, que saiu de Teresina aos 15 anos para estudar ‘com os Maristas’, em Salvador, e depois, já no Rio, abandonou um curso de diplomata para escrever em jornal e fazer poesia. ‘Nós nunca tivemos recursos. Tudo o que ele fez foi graças ao próprio esforço’, diz o pai do poeta, homenageado por Caetano Veloso na canção Cajuína. A letra faz referência a uma visita que Caetano fez em Teresina ao Dr. Heli, durante a qual este lhe deu uma rosa. Cajuína é uma bebida que os pais de Torquato costumavam mandar para ele quando morava em Salvador”. (Pai diz que o poeta reencarnou. In Folha de São Paulo, de 8.11.1992, Mais 6-4).
Estudos escolares em Teresina
O Jardim de Infância, Torquato Neto estudou, no período de 1948 a 1949, no tradicional Colégio Sagrado Coração de Jesus (Colégio das Irmãs), localizado em pomposo prédio na Avenida Frei Serafim (central e principal de Teresina).
Na turma de 1948, Torquato Neto era colega de Tânia Abreu da Silveira, Maria Dalva Costa, Francisco D. do Vale Lopes, Carmem de Maria do Vale Lopes, Maria de Jesus Marques, Marlene Gomes dos Santos, Maria do Socorro Lopes Lima, Leda Maria B. Martins, Maria da Conceição A. Silva, Maria de Lourdes A. Silva, Paulo de Meneses, Flávio de Meneses Filho, Maria de Nazareth Silva, Júlia Martins, Maria de Nazareth M. e Silva, Francisco José Mendes da Silva, José Mendes Soares, Francisco das Chagas Melo Aguiar, Áurea Maria Vieira de Freitas, Edna Maria Correia Lima Silva, Maria Áurea Correia Lima Silva, Maria de Lourdes C. B. Branco, Rita de C. do Rego Monteiro, José Virgílio C. B. Rocha Filho, Antônio Odilon Ferreira Silveira, Valterlina de Oliveira Sousa, Rosa Maria R. Oliveira, Evalda de Almeida Mousinho, Virgínia Maria Ferreira R. Monteiro, Houyker Sousa Carneiro, Nerinha Coelho Marques, Áurea Maria F. Castelo Branco, Leonel Madeira Campos, Celso Patrício de F. Aquino, Edmar Luís Bona, Lourdes Maria Oliveira Nery, Protácio Oliveira Nery, Sebastião Passos Martins, Conceição de Maria Passos Martins, Sônia Maria Magalhães Bastos, Rosa Maria Oliveira, Carlos Costa, Angélica V. Almeida, Lúcia V. Almeida, Maria Natividade S. Lopes, Rita Maria de Jesus Ribamar, Maria de Lourdes Melo, Maria José Melo, Carlos de Sampaio Pachêco, Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues, Carmem Castelo Branco do Monte, Maria de Nazareth Daniel, Jacy Maria Daniel, Teresa Monte Alvin, Maria Angélica Martins, Maria do Socorro de Moraes Melo, Regina Marly Nery, Maria do Socorro Soares e Wellington Moreira Franco.
Na turma de 1949, Torquato Neto era colega de Orlando dos Santos Batista, Lucinete Maria Ferro, Francisco Ferreira Cândido, Francisco José Martins Arêa Leão, Emídio Neto Gomes, Rita de Cássia Pires Carvalho, Sônia Abreu da Silveira, Florisa Maria Miranda Paz, Manoel Mendes Soares, Maria de Nazareth Silva, Alberone Andrade Borges, Francisco Mamede Rodrigues Sá, Carmem Maria do Vale Lopes, Marineide Menezes de Mendonça, Maria Laura Correia Lima, Marlene Medeiros Helvas, José Ubirajara Pinheiro Sousa, Antônio de Pádua Bastos, Conceição de Maria Bastos, Anatolé Franco Ferreira Fonseca, Carlos Costa, Ubirajara Sales Vieira, Vera Silva Lopes Vieira, Maria de Fátima da Justa Monteiro, Vânia Maria Lopes de Moura Santos, Manoel Moaci Madeira Campos, Francisco José Mendes e Silva, Evaldo de Almeida Mousinho, Virgínia Maria Ferreira do Rêgo, Mariana Helena M. Campos, José da Rocha Furtado, Marlene Gomes dos Santos, Antônio O. Ferreira, Maria do Socorro Almendra C. Lima, Manoel Antunes de Almeida Nunes, Teresa Isabel de Almeida Nunes, Araci Martins de Sousa, Maria do Socorro Soares, Antônio Francisco Bastos, Maria de Lourdes C. Branco, Valterlina de Oliveira Sousa, Lenita de Lobão Veras, Caliopi Chagas Barreto C. Pinoqueo, Ana Maria Gaioso Almendra, Maria Inês Gaioso Almendra, Heitor de Assis Bezerra, Heitor Nail de Assis Bezerra, Maria Helena da P. Assunção, João Fernandes Castelo Branco, Carmem Castelo Branco do Monte, José Antônio Pontes de Melo, Emília Maria Soares Cardoso Pontes, Isaura Pires Lages Neta, Lis Barbosa dos Santos, Carmem Dolores Cardoso Bastos, Sônia Maria Martins, Conceição de Maria Passos Martins, Ananildo da Silveira Soares, Hamilton Mariano C. Branco, Francisco Mesquita e Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues.
Por ser um menino inquieto, de comportamento já estranho para a sua idade / época e, principalmente, para as rígidas normas do Colégio das Irmãs, Torquato Neto estava sempre de castigo, retido na sala de aula, sem poder brincar com os colegas na hora do recreio.
Em razão disso, começou a rejeitar a escola. Amuado, ficava trancado dentro do quarto, sem querer contato algum com quem quer que seja e se recusando a se alimentar. Preocupado com essa situação, Dr. Heli Nunes, que sempre fazia as vontades do filho, resolveu tirá-lo do Colégio das Irmãs e matriculá-lo na escola particular da professora Vilma de Castro Lopes Rêgo. Por ser “uma pessoa de fino trato, culta e com a paciência e tolerância para estar com os menores, portadores de grande vivacidade e dotados de excepcional inteligência”, salienta o pai coruja.
Depois de algum tempo, Torquato Neto foi matriculado no Colégio Batista, ou Colégio Americano (porque era mantido e dirigido por americanos), localizado no cruzamento das Ruas Mato Grosso e Olavo Bilac, 3000, onde hoje funciona o colégio Inec. Ali a rigidez também era excessiva. Torquato Neto vivia se metendo em encrencas e pagando por isso, por meio de castigos constantes, que o irritavam por considerá-los injustos. Até que, certo dia, sua professora de Português, para exemplificar uma situação, passou a criticar a religião católica, dizendo que os católicos não tinham nada de santos, pelo contrário, muitos deles eram uns “capetinhas em pessoa”. Por coincidência ou não, falou isso com os olhos voltados para Torquato Neto, todo encolhido em sua carteira, bufando de raiva. Era esperar para ver! Quando chegou em casa, chamou o pai e disse, muito sério: “Eu não admito estudar com uma leiga, que é muito metida, besta e repressora. E muito menos que critiquem a religião de minha mãe. Isso não está certo! Por isso quero que o senhor vá ao colégio pedir que, em seu lugar, seja contratada uma professora como a minha mãe, que é formada.”
Dr. Heli Nunes disse que iria tomar as providências. O tempo foi passando, e a situação continuava a mesma. Torquato Neto vivia às turras com a professora, que respondia com castigos por cima de castigos. O caldo entornou quando, ao pedir uma redação, recebeu de Torquato Neto um texto rápido, curto e direto: “Eu sou Torquato Pereira de Araújo Neto. Eu sou um menino muito bom, pelo menos acho. Meu pai, Heli da Rocha Nunes é advogado. Minha mãe, Maria Salomé da Cunha Araújo é professora formada. Não mexo com a religião de ninguém e quero que também não mexam com a minha”. Levado à direção, ficou de castigo e perdeu o ônibus escolar. Bem tarde, chegou em casa a pé, chorando muito e jurando que não voltaria mais ao colégio. Dr. Heli Nunes, perdendo a paciência, disse tantas coisas para a diretora - miss Sharlene -, que acabou por ouvir, na bucha, que o enfant terrible do seu filho estava definitivamente expulso do educandário.
Dr. Heli Nunes o levou novamente à professora Vilma de Castro Lopes Rêgo, que o preparou para o ingresso no Ginásio Leão XIII (fundado a 15 de julho de 1938, pelos professores Moaci Madeira Campos e Felismino Freitas Weser. Rua São João, 1.100, esquina com a Simplício Mendes.) Um reforço a mais veio da professora Ana Cordeiro Soares (Tia Nãnãna), que mantinha escola particular em sua residência, na Rua Félix Pachêco, 1645, e era diretora do Grupo Escolar Gabriel Ferreira, no Bairro Vermelha.
O exame de admissão, correspondente ao 5º ano primário, foi realizado no dia 16 de novembro de 1955. Torquato Neto passou com uma das notas mais altas: Português: prova escrita 7,5 - prova oral 7,5 - média 7,5. Matemática: prova escrita 8 - prova oral 10 - média 9. Geografia: 9. História do Brasil: 8,75. Média Geral: 8,56.
Embora obtendo a menor média na disciplina Português, esta era, segundo ele, a sua matéria preferida. “Eu estudava as coisas direitinho. Mas, o que eu gostava mesmo era de escrever”.
Dona Salomé, querendo agradar o filho pelo resultado alcançado, perguntou que presente ele gostaria de ganhar. “A coleção completa do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare, mestre da língua inglesa, e a obra completa de Machado de Assis, mestre da língua portuguesa”, respondeu. Surpresa, ainda tentou demoli-lo de tal pedido: “Mas, meu filho, eu acho essas leituras muito elevadas para a sua idade, escolha uma de mais fácil compreensão”. Torquato Neto, determinado, reagiu afirmando, com um sorriso entre os dentes: “Que nada, mamãe, a senhora está por fora, é só ler com atenção que a gente compreende tudo”.
Em 1956 fez a 1ª série, em 1957, a 2ª. No ano seguinte, a 3ª, e, em 1959, concluiu o curso ginasial. Sempre passando em terceiro lugar. “Não era o primeiro da turma, embora tivesse capacidade para tanto, porque a mãe era rigidamente vigilante quanto aos estudos dele e poderia cobrar que tirasse o primeiro lugar todos os anos, e ele não queria ficar nessa obrigação de maneira alguma”, explica Dr. Heli Nunes.
O medo de ser desaprovado
O poeta Waly Salomão, parceiro de arte e artemanhas, que conviveu longa e intimamente com Torquato Neto, revela que ele sempre procurou estar de bem aos olhos de dona Salomé, de quem gostava muito, apesar do medo que sentia dela. “Torca morria de medo de ser desaprovado aos olhos da mãe medusa, tirana que atendia pela graça do nome bíblico de Salomé e que semelhava em mais de um aspecto à mãe de Charles (Enivrez-Vous) Baudelaire. O temor fulminante de se constituir no idiota da família. O medo de ser doido aos olhos da mãe suserana. Ser feliz é ser capaz de olhar para si mesmo. O medo exclui a felicidade e inclui a melancolia”.
Nacif Elias confirma que havia entre Torquato Neto e dona Salomé uma relação amorosa intensa, mas muito conflituosa “exatamente porque a tia Salô era uma super mãe, como era também uma super avó. Da mesma forma que ela tratou Torquato Neto ela queria tratar Thiago, naquela super proteção, de loba defendendo a cria. Quando Thiago anunciou que queria ser piloto de avião, ela, imediatamente, reagiu, querendo impedir, achando que era perigoso, que o avião iria cair e matá-lo. Mas Thiago, que desde os quatro anos de idade já vibrava com fotografias de avião, levou em frente sua paixão e tornou-se piloto, e bom piloto, por sinal. A tia Saló era assim, dava duro até em cima de mim. Eu tinha que tomar a bença a ela, poxa! Acho que essa coisa de ser super mãe, super avó, super protetora vinha por causa da morte prematura da primeira filha”, destaca ele.
Estripulias de um colegial
Nacif Elias lembra, ainda, que na turma do Leão XIII, “dez camaradas andavam sempre juntos: eu, Torquato Neto, Noronha Filho, Haroldo de Almeida Vasconcelos, Luís Augusto Vasconcelos, os dois irmãos Arêa Leão, os dois irmãos Reis e o negão Odilon. Era um Clube do Bolinha. E tinha o tio Vital Araújo, que chegara de São Paulo, todo empolgado, para dar aulas de jiu-jítsu. Ele pegava a gente pra brigar uns com os outros. Apanhávamos a torto e a direito. Foi quando resolvemos aproveitar o grande quintal da casa de Torquato Neto, na Rua Coelho de Resende, 249, Sul, para fazer uma quadra de vôlei. Nos cotizamos, mas era caro pra cacete! A saída foi roubar os tijolos da construção da frente. Acordávamos às 4 da manhã. Fazíamos campeonato pra ver quem levava mais. Quando roubamos o último tijolo, o dono apresentou a conta ao tio Heli Nunes, que acompanhara as nossas investidas no mundo do crime, mas ficara na dele. Torquato se grilou, um dia, e armou uma tremenda briga com Haroldo. Foi preciso a intervenção da família dos dois para resolver a parada, que foi resolvida, mas, os dois ficaram sem se falar por um bom bocado de tempo. Torquato Neto era calmo, tímido, aliás, falso tímido, era muito era na dele, um gozador nato, porém quando se esquentava, era fogo na roupa. Certa feita, nos deixamos levar pela curiosidade e subimos pelo cano da calha para o telhado do banheiro das meninas, tiramos algumas telas e estávamos naquele paraíso, com aquelas meninas todas em sua inocência, quando fomos denunciados pelo Jesus Albuquerque, irmão do Arnaldo Albuquerque. Torquato Neto, o último a descer foi pego, repreendido e quase expulso do Leão XIII. O professor Moaci Madeira Campos era muito rígido, severo, conservador, e raramente voltava atrás em suas decisões, mas, por interferência do tio Heli, que estava sempre na defesa de Torquato Neto, ficou apenas numa boa reprimenda, o que não era nada para ele e para todos nós, molecotes cheios de nós pelas costas.”
Faziam parte da turma de Torquato Neto: Fernando Parente Fortes, Vicente de P. R. e Silva, José Felipe Madeira Campos, Antonino Freire da Silva, Geraldo R. da Silva, Antônio José da S. Rêgo, João Ribeiro de Carvalho Neto, Antônio de Noronha Pessoa Filho, Francisco J. M. E., Haroldo Almeida de Vasconcelos, Francisco José Martins Arêa Leão, José A. P. de Melo, Armando J. Melo, José R. P. de Araújo, José Wilson da P. Santos, José A. da S. Filho, Otávio Melo da Mota, José Teixeira Brasil, João P. da S. Neto, Odilon, Nacif Elias e Alberto Ribeiro Soares, dentre outros.
Vai bicho, desafinar o coro dos contentes
Torquato Neto foi educado para a carreira diplomática. Desde pequeno, tinha aulas de inglês, francês e espanhol. Adolescente, lia Sommerset Maughan, Edgar Alan Poe e Werner Keller (E a Bíblia tinha razão). Em poesia, renegava os românticos e se dedicava aos simbolistas e modernistas. Dos piauienses, lia muito Mário Faustino, mais velho do que ele 14 anos, e que já havia lançado O Homem e sua Hora (Edições do Porto, 1955).
“Torquato, desde menininho, era cheio de vontade. Era quem, em casa, dirigia as nossas vidas. E todas as vontades dele eram atendidas. Desde cedo se mostrou inteligente e com uma habilidade rara para pedir. Era um mestre na arte de conseguir o que queria e ainda tinha a mãe, que era cúmplice em tudo. Dizem que Salomé era durona, porém ela se derretia toda para ele. Levava-me a fazer todas as vontades dele. Torquato não queria deixar a família e os amigos, mas o convencemos de que Teresina era muito provinciana para a sua inteligência privilegiada, para o que ele queria fazer, como o cinema (era fascinado), as artes plásticas (adorava desenhar e pintar), a poesia (andava com os cadernos sempre cheios de poemas). Quando terminou o Ginásio, em 1959, pediu para ir para Salvador, que estava atraindo jovens de vários lugares. O reitor Edgard Santos abriu as portas da Universidade para os maiores talentos da época, tanto do Brasil quanto do exterior. E para lá se foi Torquato atrás de novos conhecimentos, de novos rumos. De lá foi para o Rio, São Paulo, Europa, Estados Unidos, e quando voltou foi para ficar na saudade de todos nós”.
Antes de aportar em Salvador, passou uma temporada em Ipanema, no Rio de Janeiro, com o amigo e ilustrador João Viana, o Jota, com quem iria compor Quem dera. Ficou encantado com cidade e com a amizade feita com o vizinho Jards Macalé, que, futuramente, viria a ser um de seus parceiros em composições famosas, como Let's Play That.
Na Bahia de Todos os Santos
Torquato Neto chegou a Salvador no início de 1960. Iria cursar o científico no Colégio Nossa Senhora da Vitória, o mesmo internato da congregação dos Irmãos Maristas, onde, numa turma mais adiantada, estudava Gilberto Gil (que se preparava para entrar na Faculdade de Engenharia, em respeito a um pedido do pai, o que não acontece: sem conseguir êxito no vestibular, ingressaria no recém-criado curso de Administração de Empresas, da Universidade Federal da Bahia, em 1961).
Em Salvador, além da mesada mensal enviada por Dr. Heli Nunes, Torquato Neto recebia de dona Salomé, religiosamente, uma caixa de produtos de higiene e mantimentos. Entre outros itens, não faltavam carne de sol, sabonete Alma de Flores, pasta dental Philips e lenços bordados com as iniciais TN. Sem falar nas roupas, sempre as mais tradicionais e cafonas, que o acabavam convertendo numa figura pitoresca.
Torquato Neto vivia desenhando e enchendo os cadernos de poemas. Em pouco tempo passou a colaborar com os jornais da escola, com “poesias francamente drummondianas, bonitas, elegantes, que soavam bem, sensíveis e sóbrias, delicadas e longas, que um dia possivelmente seriam um livro”, analisa e profetiza Caetano Veloso.
Vidrado na sétima arte, Torquato Neto não perdia uma sessão nos cinemas locais e comprava tudo o que se relacionasse ao assunto. Era, então, um fã de carteirinha de Glauber Rocha, que, com os artigos críticos, abria o seu mundo e o preparava para futuras incursões nesta área.
Tendo como ponto de convergência o Centro de Cultura Popular da União Nacional de Estudantes (UNE), que tinha um ramal em Salvador e promovia atividades culturais e artísticas na cidade, estudantes de vários níveis e graus se conheceram: Torquato Neto foi apresentado por Duda Machado a Caetano Veloso, que foi apresentado pelas pintoras Sônia Castro e Lena Coelho ao diretor de teatro, jornalista e cineasta Álvaro Guimarães e pelo produtor Roberto Santana a Gilberto Gil, e pelo jornalista e cineasta Orlando Senna a Tom Zé (Antônio José Santana Martins), e pelo professor e sociólogo Hélio Rocha ao poeta José Carlos Capinan. E assim, um apresentando um ao outro, foram todos se conhecendo. Vieram, ainda, Maria Bethânia, Gal Costa (na época Maria da Graça), Waly Salomão, Rogério Duarte, Fernando Batinga, Fernando Lona, Djalma Corrêa, Pitti, Alcivando Luz, Geraldo Portela, Carlos Alberto Silva, Alberto Silva e Geraldo Sarno, que veio a ser, mais tarde, o primeiro diretor nacional de curtas-metragens com preocupações sociológicas.
Gilberto Gil relembra aquele tempo de muvuca cultural: “(...) quando, estudantes em Salvador, todos em diferentes níveis e graus, eu, Capinan, Caetano, Tom Zé, Torquato Neto, Waly Salomão, Duda Machado, Álvaro Guimarães, Rogério Duarte, Fernando Batinga e tantos outros vivíamos o dia-a-dia da iniciação nas lides culturais, na política estudantil, nas experiências do sexo, do amor, da aventura de conduzir-nos, num incessante entra-em-beco-sai-em-beco corpoalma adentro de uma cidade mítica, bela e sensual, de mil histórias antes por outras gentes e poetas vividas e mais outras tantas mil histórias então por outras tantas gentes e poetas por viver. Éramos todos, ali, um uníssono unissonho de sermos - nos tornarmos - gentes e poetas a um só tempo. Gentes no sentido de indivíduos/átomos do coletivo povo com sua massa material em labuta e luta, como corpo social, estágio/estado de vida, quantidade de comida, praça, massa de manobra de guerra, força, musculatura contraída para o soco, ideia-bala, pensamento-espada, a vida em seu vale-quanto-pesa, materialismo experimental. Poetas no sentido religioso de mensageiros de deus, no sentido psicoanalítico de intérpretes dos sonhos, alma psicossocial, qualidade da comida, musculatura distendida após o orgasmo, palco, beijo, ideia-flor, pensamento-unguento, carnaval, celebração piedosa, a vida no seu vale-quanto-reza, fundamen-talismo espiritual. Éramos, ali na Bahia daquele momento, como folhas ao vento (quase furacão) dos novos tempos paradoxais”.
Torquato Neto, em entrevista ao poeta e jornalista Menezes y Morais, editor de cultura do jornal O Dia, de Teresina, fala daquela época: “A experiência era só cineclubismo mesmo. A gente era vidrado em cinema. Falava-se nisto de manhã, de tarde, de noite. Glauber Rocha, era por volta de 1960, começou na Bahia o movimento Cinema Novo e justamente nesta época ele filmava Barravento, o primeiro grande filme brasileiro. E nós fizemos então um filme que na verdade foi dirigido por Alvinho Guimarães, que terminou hoje em dia sendo editor de Verbo Encantado - que já acabou no vigésimo número, há poucos dias. O filme chamava-se Moleques de Rua, feito por todos nós, Alvinho, Caetano, Duda, eu e mais alguém que se perdeu no tempo”.
No Rio de Janeiro
Torquato Neto, que jamais cogitara ser diplomata, como a família desejava, já totalmente impregnado pela produção cultural e com a ação política do CPC, em Salvador, escreveu aos pais uma carta (acompanhada de vários artigos e poemas publicados nos jornais do Colégio) pedindo permissão para se mudar para o Rio, já alimentando propósito de futuramente buscar espaço na chamada grande imprensa e fazer jornalismo na área cultural. Com o consentimento de Dr. Heli e de dona Salomé Nunes, deixou Salvador em janeiro de 1962.
No Rio de Janeiro, matriculou-se no Curso Hélio Afonso - pré-vestibular às Faculdades de Direito e Filosofia, sob a matrículo 267, turno manhã. No ano seguinte passou para jornalismo na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Começou a frequentar a sala de aula, aguentando até o segundo ano, “aí achei que o negócio tava muito chato e larguei tudo”.
Caetano Veloso narra que, embora não saiba por intermédio de quem, Torquato Neto “foi introduzido nas reuniões da casa de Tereza Cesário Alvim, de onde voltava com histórias sobre Paulo Francis e Flávio Rangel, que lhe pareciam sempre mais saborosas do que a mim que o ouvia com agrado, mais interessado nele do que no objeto dos seus relatos. Às vezes ele confessava que seu grande desejo era tornar-se jornalista no Rio, manter uma coluna. Comprazia-se em pedir a todos os motoristas de táxi que o conduziam pela Zona Sul, que tomassem a praia, pois - e aqui ele olhava sério para o motorista como se fosse a própria sensibilidade lírica desafiando o espírito prático - ‘é mais bonito’. Os motoristas cariocas, metropolitanos práticos porém poéticos, fingiam não ouvir esse último adendo, e Torquato sorria maroto para mim, duplamente feliz: por fazer seu pequeno número de personagem folclórico da cidade, e por reassegurar-se de que essa cidade era o Rio de Janeiro” (Verdade Tropical, SP, Companhia das Letras, 1997).
O cineasta Rui Guerra apresentou Edu Lobo a Torquato Neto. Iniciam, de imediato, uma parceria musical, curta, porém marcante para ambos. “Trabalhamos durante três meses, foi quando fizemos Veleiro, Lua Cheia e Pra Dizer Adeus, que considero uma das minhas três melhores músicas, ainda que só três anos depois fosse estourar”, declara Edu Lobo, que, sentindo o parceiro estar precisando de uma mudança de vida e de ares, sugeriu que se mudasse para São Paulo, o que Torquato Neto fez em 1966.
Em São Paulo, com os concretistas
Solteiro em São Paulo, com a mulher Belina, em Salvador, prestes a parir Nara, a primeira filha do casal, Gilberto Gil passou a hospedar amigos como Torquato Neto, José Carlos Capinan, Geraldo Vandré e o próprio cineasta e eventual letrista Rui Guerra. Sua residência era um lugar muito apropriado, no afastado Bairro de Cidade Vargas, no extremo sul da cidade. Não foi à toa que logo ganhou o apelido de “Pensão dos Baianos”.
O convívio com os poetas e teóricos da poesia concreta, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, fez com que Torquato Neto mudasse de opinião e se interessasse pelo movimento concretista, participando e divulgando-o intensamente. Em entrevista ao poeta e jornalista Menezes Y Morais, jornal O Dia, Domincultura, de 18 de junho de 1972, informa: “Hoje em dia, o negócio importante para mim é a poesia concreta, lá de São Paulo, e o resultado do trabalho que a gente tem tentado desenvolver”.
Casamento ou festa tropicalista?
Na inauguração do Teatro da UNE - União Nacional dos Estudantes, no antigo Villa-Lobos da Praia do Flamengo, em 1963, conheceu a baiana de Ilheus Ana Maria dos Santos e Silva, com quem se casaria em 11 de janeiro de 1967, apadrinhado por Gilberto Gil. Em 27 de março de 1970, nasceu o filho Thiago, piloto de avião, com o nome de comandante Nunes.
Ronaldo Bôscoli lembra que “quando Torquato casou, era ainda muito importante para a patota baiana. Que - honra lhes seja feita - iniciavam um rompimento de estruturas. Mas todo mundo muito paisano, ainda. Torquato casou numa igreja linda e antiga. Lembro-me de que cheguei cedo demais e visitei a igreja e seus pátios seculares. O casamento foi tão careta que a noiva - como manda o figurino - chegou mesmo. Embora com atraso, e numa limusine dessas que só pintam em casamento. Por pouco o casamento não vira uma grande festa tropicalista. Tudo estava programado para isso acontecer. Meia hora antes o padre já estava nervoso: ia celebrar o casamento de Torquato Neto, o mais ativo letrista do chamado grupo baiano, com Ana Maria dos Santos e Silva, e tinha medo de que, na Hora H, começassem a aparecer violões perto do altar. Realmente, estava programado um show para a cerimônia, em que tomariam parte todos os artistas amigos do casal. Diante, porém, da solenidade do padre ao declarar que não permitiria samba na igreja, acharam melhor deixar a farra para a chopada na casa da noiva. E ela, a farra, aconteceu”.
Giro pela Europa e Estados Unidos
Torquato Neto ganhou uma bolsa de estudo para escrever sobre As influências africanas na música popular brasileira. Hélio Oiticica iria expor na Whitechapel Gallery, em Londres. Singraram juntos o Atlântico no dia 3 de dezembro de 1968. Ao todo, passariam catorze dias em alto mar, fazendo escalas em Vigo, na Espanha, e em Rotterdam, na Holanda, onde ficaram sabendo que o presidente militar Costa e Silva assinara, no dia 13, o famigerado AI-5, logo batizado por eles de “blitzfacista”.
A BBC de Londres fez uma entrevista com Torquato Neto, que, por sua vez, entrevistou o mito Jimi Hendrix, com quem passou o tempo fumando haxixe e escutando “aquele álbum branco dos Beatles”. A entrevista de Jimi Hendrix foi enviada para a revista Cláudia, da Editora Abril, que, além de não publicá-la, perdeu o original. Em Londres, ainda, Os Mutantes (Rita Lee, Sérgio e Arnaldo Batista) encontram-se ali, sentindo a liberdade de andarem pelas ruas, com os seus cabelos compridos, suas roupas diferentes dos padrões normais, sem que as pessoas ficassem olhando, como acontecia no Brasil. Sérgio Batista, sem se fazer de rogado, “saiu andando por Piccadilly Circus com um bizarro chapéu de couro de cangaceiro. Depois de alguns quarteirões, sentindo-se como um ser invisível, Sérgio viu alguém olhando do outro lado da rua e vindo em sua direção. Era simplesmente o poeta Torquato Neto, que também estava viajando pela Europa e ficara curioso por saber quem era aquele brasileiro exótico. O piauiense e o paulista morreram de rir, sem que nenhum britânico desse a mínima bola aos dois”, conta Carlos Calado. Em Paris, se encontra com Caetano Veloso, e, entre outras ocupações, vai à cinemateca ver filmes do mito Godard, cineasta da nouvelle vague, um dos símbolos mais fortes da contracultura cinematográfica mundial, muito cultuado por ele desde a Tropicália pela “ousadia” de explodir com a lógica ilusionista da linguagem cinematográfica linear (leia-se hollywoodiana) “sem ter medo de quebrar a cara”, conforme André Monteiro.
Tentativa de montar um novo grupo
“No dia 5 de dezembro de 1969, Torquato Neto e Ana Maria embar-caram em um voo da Varig, com destino ao Rio de Janeiro. Estavam retornando da Europa. Torquato Neto estava lá desde o dia 3 de dezembro de 1968. No Rio, foram morar no apartamento da família de Ana. Saudoso da família e dos amigos, veio a Teresina e, em reunião conosco, disse do seu rompimento com o grupo baiano, da sua briga inconsequente com Hélio Oiticica, em Londres, da censura em suas letras, do boicote nos meios de comunicação, e que estava aqui para montar um novo time de trabalho. A mim, em particular, pediu que o ajudasse a convencer o compositor Carlos Galvão, o artista gráfico Arnaldo Albuquerque, os músicos Renato Piau e Bugyja Brito a se mudarem para o Rio, com essa proposta de um trabalho coletivo. Ele estava decidido a dar a volta por cima, esquecer de vez os baianos. De volta ao Rio, alugou um estúdio, que ficava em cima do bar Amarelinho, no 9º andar, e, juntamente com Luiz Otávio Pimentel, Waly Salomão, Carlos Pinto, Vinicius Cantuária, Luís Moreno e Magão, estes três últimos que foram do Terço, um dos melhores grupos de rock da época, procurou iniciar uma nova etapa na vida dele. Torquato Neto pediu que me trabalhassem bem porque, a partir daquele momento, eu seria a sua nova intérprete e eles os novos parceiros musicais dele. Mas não era para fazerem música ao estilo de Gal Costa e de Maria Bethânia e sim ao meu estilo. Começamos a ensaiar, passamos a ter um convívio quase que diário na casa de Torquato Neto, no meu apartamento, na Rua Mena Barreto, em Botafogo, ou no apartamento de Bugyja Brito, em Caxambi, 184, apartamento 201, no Meyer. Porém, a coisa não vingou. Torquato Neto não esquecia os baianos, se esforçava para fazer novas composições, mas não dava e, além do mais, havia o grupo dos cineastas, formado por Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Luiz Otávio Pimentel e Ivan Cardoso, que o interessava mais. Ele sempre foi mais ligado ao pessoal do cinema do que ao da música, até porque aqueles eram amigos mais verdadeiros, como ficou provado”, lembra Lena Rios.
A volta, em 69, meio sem graça
Em entrevista à turma da página Comunicação (jornal Opinião, de 31 de janeiro de 1971), Torquato Neto desabafa: “Eu fui pra Europa antes de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em 1968, passei o ano de 69 todo lá. Encontrei-me com Caetano em Paris, quando eles saíram do Brasil. Voltei no fim de 69, meio sem graça e querendo recomeçar aquela minha jogada de cinema, já que não tinha interesse pra eu continuar fazendo música, porque a minha condição de trabalho foi sempre com relações de amizade. Só sei trabalhar com pessoas de quem gosto muito e de quem não discordo em nada. Isso é meio difícil da gente encontrar. Depois que cheguei, andei fazendo umas músicas com Nonato Buzar, pra ganhar dinheiro. E, por último, perto de vir pra cá, eu comecei um trabalho com o Macalé, que está me interessando muito. Nada disso foi divulgado e eu nem sei como está. Fizemos seis músicas e a censura cortou quatro. Duas ainda não sei se vai dar pé de gravar. Só vou voltar no fim de março e não sei... A gente tem que enfrentar isso tudo pra trabalhar hoje em dia. E, pra fazer só aquela coisa bendita, abençoada, é meio chato e eu não aguento. Tenho muito pouco a ver com música. Quase nada mesmo. Meu negócio agora é outro. Estou mais ligado agora a cinema”.
Nos carnavais de Teresina
Em janeiro de 1971, Torquato Neto veio passar o Carnaval em Teresina, trazido pela Escola de Samba Brasa-Samba, dirigida pelo baterista cearense Edmilson Morais de Amorim, e pelo teatrólogo e radialista, também cearense, Ary Sherlock, e outros mais. Na oportunidade, compõe, com Silizinho, Brasa Samba, o samba-de-enredo da agremiação, que conquistou o vice-campeonato naquele ano, informa Ary Sherlock, acrescentando que “todo mundo vibrou, todo mundo cantou, no asfalto e nos clubes, Brasa-Samba”.
Brasa Samba
Se o tempo deixar, meu amor
Se o povo quiser escutar
Eu vou para a rua
Eu vou, eu vou
E só quarta-feira
Eu vou voltar
É tempo do tempo esquentar
Pandeiro, tan-tan, tamborim
E o quente para a gente
É se apresentar
Sambando na Frei Serafim
Ai de mim
É Brasa-Samba
É muito Samba
É Brasa Samba
Pra quem quer samba
É muito sambar
É muito samba
É Brasa-Samba
Nossa Escolinha
Acabou de chegar
Verdadeira paixão pelo carnaval
Torquato Neto tinha paixão enorme pelo Carnaval. Sua obra está repleta de referências a essa que ele considerava a maior festa popular aberta do planeta. Paulo José Cunha confirma: “Torquato Neto se amarrava em Carnaval, como adorava também lança-perfume. Uma das coisas que mais vi foi Torquato curtir lança-perfume. Ele é do tempo do Rodoro, que se vendia nas ruas de Teresina, ali na frente do Theatro 4 de Setembro, na Praça Pedro II. O camelô vendia numa boa. Você escolhia e comprava junto com a serpentina, com o confete. E ninguém era viciado naquela porra! Jânio Quadros, como gostava de encher a cara de uísque, enlouqueceu de proibir a venda de lança-perfume. Um maluco, o cara”.
Era muito comum, nos Carnavais de Teresina, jogar lança-perfume nos chamados corsos, sendo um dos mais famosos o das raparigas da Paissandu, uma das zonas de cabarés das mais tradicionais e ainda hoje existente na cidade, sem brilho em face da ação devastadora da especulação imobiliária. Nos tempos de glória, em caminhões disputadíssimos, as raparigas vinham da Zona da Paissandu, cortavam a Praça Pedro II e subiam na direção da Avenida Frei Serafim. Super apetitosas, na plenitude de suas formosuras, promoviam festa nos olhos e alegria no coração dos mais afoitos. Elas vestiam suarês (saias enormes que cobriam as grades dos caminhões), confeccionados em laquê, tafetá e failete, nas cores azul-celeste, vermelho e amarelo dourado.
No carnaval tereinense de 1971, Torquato Neto convidou os amigos mais chegados para saírem vestidos como as antigas raparigas, com sombrinhas de melindrosas e todos os apetrechos que lembrassem as “meninas boas de famílias más”. Em cima do caminhão, ao passar em frente ao local em que estava a família, Torquato Neto, julgando-se irreconhecível, teve a surpresa de ser chamado pelo nome por sua avó Sazinha. “Mas, como a senhora me reconheceu, vó, se estou irreconhecível?”, perguntou ele, no que ela, rindo muito, respondeu: - “Pelos pés, meu querido, pelos pés. É difícil uma mulher, mesmo da vida, ter um pé 44.”
Paulo José Cunha, uma das raparigas carnavalescas, revela que este foi um dos melhores momentos de Torquato Neto naqueles tristes anos. “Ele era só felicidade pela vitória da Brasa Samba e por estar entre os amigos, de maneira tão descontraída e carinhosa. Mas, nem tudo era samba, tinha o dia seguinte, e ele teve que voltar ao Rio de Janeiro, para o seu inferno astral. Partiu no dia 24 de março. Já estava nos seus últimos momentos, acrescenta”.
Geleia Geral - padrão de jornalismo cultural
Torquato Neto participou e incentivou alguns alternativos nacionais como os cariocas Rolling Stone, Presença e Flor do Mal (idealizado por Luiz Carlos Maciel enquanto estava na prisão, com o restante da equipe do O Pasquim; Rogério Duarte cuidou da concepção gráfica de Flor do Mal, e Ana Maria da diagramação. Torquato Neto não contribuiu com textos, seja para não entrar no espaço de Ana Maria, sua mulher, seja por já se revelar dissidente do Cinema Novo, cujos integrantes eram próximos da sua equipe editorial), JA, revista de Tarso de Castro, criada posteriormente ao O Pasquim, e o baiano Verbo Encantado. Atuou nos suplementos Plug, do Correio da Manhã (juntamente com Waly Salomão e Scarlet Moon. Com o editor Luiz Carlos Sá - que em breve formaria um trio com Zé Rodrix e Guarabira - compôs Toada), e O Sol, do Jornal dos Sports (famoso pelas suas páginas em cor-de-rosa, inspiradas no jornal italiano La Gazzetta dello Sport), e no diário carioca Última Hora, com a corrosiva coluna Geleia Geral, produzida de 19 de agosto de 1971 a 11 de março de 1972.
“Era uma coluna diária onde eu abordava problemas gerais. O problema de vida que nós tivemos que enfrentar uma geração inteira. Eu tentei, durante nove meses, fazer uma coluna reflexa, um alto-falante, um retrospecto também... exatamente no momento em que o O Pasquim tava falindo, como uma coisa realmente importante, quente. Depois que deixei de curtir a coluna, eu deixei de fazer. Minha coluna era lida exatamente pelas pessoas que eu queria que lessem. Pela juventude do Rio de Janeiro. Cabeludos em geral”. (Torquato Neto, Verbo Desencantado. Entrevista a Menezes y Morais. In O Dia, Teresina, Domincultura, 18 de junho de 1972).
Para Waly Salomão, Geleia Geral sintonizava os movimentos de sua época. “Embora escrevendo numa época de muita censura, um período negro da nossa história, Torquato manteve, com sua coluna, um respiradouro de abertura. Ler hoje os seus textos é tomar contato com uma prefiguração profética, ousada e desesperada do que estava por acontecer”.
“Separado dos baianos, migrou para outros códigos. De sua coluna, na Última Hora carioca, infelizmente de curta duração, abriu fogo contra o cinema novo, que já estava se academizando nos cargos e verbas oficiais. E apoiou a marginalidade dos experimentalistas (e isto poderá ter-lhe custado a coluna), como Sganzerla, Bressane, Ivan Cardoso, Luiz Otávio Pimentel, que representavam o lado urbano e universalista do cinema brasileiro”, informa Décio Pignatari. (Mais de ideologia do que de magia – um depoimento-entrevista de Décio Pignatari a Régis Bonvicino. In jornal Fogo Cerrado, 8a edição, 25º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, nov. de 1982).
Por meio da coluna Geleia Geral, “Torquato Neto muito lutou para que as pessoas reconhecessem o cinema marginal de Rogério Sganzerla, de Ivan Cardoso, a arte de Hélio Oiticica, brigou pelos direitos autorais etc”, revela Ana Maria a Tárik de Souza (JB, 9 de novembro de 1992).
“Na coluna que, longo tempo, manteve no jornal Última Hora, Torquato praticou, em nível de massas, a mais ágil das linguagens: esplendidamente ‘subjetiva’, descontínua, ideogrâmica, blocos carregados de eletricidade, movida a elipse, a figura-mestra de Torquato, conduzida até a elíptica apoteose de auto eliminação final, o efeito da Falta. Não exagero ao dizer que Torquato criou um padrão de jornalismo cultural. Um padrão baseado na extrema criatividade de linguagem. Na hibridização dos discursos: poéticos, factuais, matérias nobres x pobres. Esse jornalismo torquatiano estava a serviço de uma causa, a promoção do super 8 e do cinema marginal, periférico às glórias e consagrações do Cinema Novo, em vias de academização, comercialização e caretice. Breve nas telas deste cinema: Torquato Neto”. (Paulo Leminski: Os Últimos Dias de um Romântico. Folha de São Paulo, Folhetim, 7.11.1982).
Torquato Neto manteve a coluna Geleia Geral no meio da barra mais pesada do país. Também cultivava o desentendimento: aos olhos da esquerda, era porra-louca alienado; da direita, um cabeludo subversivo. Nela, Torquato Neto resume a coragem: “Quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão”.
Na imprensa alternativa do Piauí
Torquato Neto marcou presença na página Comunicação, do jornal Opinião, no jornal Gramma e no suplemento Hora Fatal, do jornal A Hora, além de ter trabalhado na Rádio Clube de Teresina e na Rádio Pioneira de Teresina. Era filiado ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado do Piauí. De acordo com a página 17 do livro de filiação, seu registro no Sindicato é o de número 165, assinado pelo presidente João Rodrigues de Azevêdo Filho. Data de Nascimento: 9 de novembro de 1944. Ele tinha 19 anos de idade na época. Solteiro. Carteira Profissional n. 60.515, Série 48a. Empresa: Rádio Pioneira de Teresina. Função: Repórter. Número da Previdência: 23.847. Registro no Ministério do Trabalho Indústria e Comércio n. 73. Residência: Rua Coelho de Resende, 249 - Sul, Teresina.
Na Rádio Pioneira de Teresina, Torquato Neto foi apadrinhado pelo tio Francisco das Chagas Mendes (Marlene Mendes), diretor geral da emissora e pessoa da máxima confiança de Dom Avelar Brandão Vilela, titular da Rádio. Data de admissão: 10 de julho de 1963. Registro de empregado: n0 36. Matrícula: 2675. Função: Repórter. Salário: CR$ 9.000,00.
Na Rádio Clube de Teresina, Torquato Neto, segundo Osvaldo Lemos, ex-integrante do Departamento de Jornalismo da emissora, apresentou o programa Roda de Samba. O que é confirmado por Alexandre Carvalho e Djalina Elístia, na época discotecária e uma das principais auxiliadoras do poeta. Arnaldo Albuquerque recorda que Tereza Fonseca, “a Terezona, que morreu de pressão alta, fazia o programa com Torquato Neto.” “Fui à Rádio Clube de Teresina resgatar alguma coisa, mas não encontrei mais nada, mas é possível levantar isso através de depoimentos de pessoas que trabalhavam lá, na época. E urgente, antes que estas pessoas desapareçam também”, alerta Paulo José Cunha.
A Rádio Clube de Teresina foi inaugurada em 21 de janeiro de 1960 pelo grupo político do governador Chagas Rodrigues (31.1.1959 a 6.6.1962). Secretário da Justiça e Segurança Pública de Chagas Rodrigues, exonerado por desavença política com o deputado e secretário de Educação e Saúde Paulo Ferraz, também exonerado, o Dr. Valter Alencar recebe, como prêmio de consolação, a gerência da emissora, dela se tornando sócio minoritário, depois majoritário. Nessa condição, inaugura, em 3 de dezembro de 1972 (aniversário de Maria do Amparo Ferreira Alencar, sua esposa) a TV Rádio Clube de Teresina, com o slogan: “A força de um ideal”.
“Dona Salomé, escrivã de Polícia, trabalhou com o Dr. Valter Alencar, na Secretaria, e o Dr. Heli Nunes colaborou com o programa Esperanto, língua da humanidade, idealizado por Antônio de Pádua, o Padinha do Banco do Brasil, na Rádio Clube de Teresina. Eu trabalhei lá, com Alexandre Carvalho, os irmãos Djalina - discoterária, Djalmira (a loura) - tesoureira, Djalmir - diretor artístico, Antônio Ayres - diretor comercial, Teddy Ribeiro e Pedro Mendes Ribeiro, entre outros”, lembra Osvaldo Lemos.
Página Comunicação
Nos últimos anos de vida, Torquato Neto vinha mais constantemente a Teresina, numa espécie de despedida fragmentada. Em 1970 é apresentado, pelo primo Paulo José Cunha, a Durvalino Couto Filho, 17 anos, então estudante do segundo grau, e, em 1971, a Edmar Oliveira, que, com Fátima Mesquita, agendam com ele uma entrevista para a página Comunicação, que editavam no jornal Opinião, de propriedade de Petrônio Portella Nunes, e dirigido pelo professor José Camilo da Silveira Filho, tendo como secretário de redação o advogado Evandro Cunha e Silva. A entrevista saiu na edição do dia 31 de janeiro de 1971, marcando, a partir daí, a participação de Torquato Neto na página Comunicação, que circulava desde o dia 19 de março de 1970. Nela, foram publicados, pela primeira vez, alguns dos textos que formariam a composição de Os Últimos Dias de Paupéria, como:
MARCHA À REVISÃO
1 – COLAGEM - Quando eu a recito ou quando eu escrevo, uma palavra - um mundo poluído - explode comigo e logo os estilhaços desse corpo arrebentado, retalhado em lascas de corte e fogo e morte (como napalm) espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Informação: há palavras que estão nos dicionários e outras que não estão e outras que eu posso inventar, inverter. Todas juntas e à minha disposição, aparentemente limpas, estão imundas e transformaram-se, tanto tempo, num amontoado de ciladas.
Uma palavra é mais do que uma palavra, além de uma cilada. Elas estão no mundo e portanto explodem, bombardeadas. Agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma; qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam nos hospícios. No princípio era o verbo, e o apocalipse, aqui, será apenas uma espécie de caos no interior tenebroso da semântica. Salve-se quem puder.
As palavras inutilizadas são armas mortas e a linguagem de ontem impõe a ordem de hoje. A imagem de um cogumelo atômico informa por inteiro seu próprio significado, suas ruínas, as palavras arrebentadas, os becos, as ciladas. Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema. Informação? Cuidado, amigo. Cuidado contigo, comigo. Imprevisíveis significados. Partir pra outra, partindo sempre. Uma palavra: Deus e o Diabo”. (Reproduzido no Geleia Geral - 8/11/71. 6ª feira).
Durvalino Couto Filho declara que Torquato Neto, apesar de já ter um nome nacionalmente conhecido, por suas composições com Caetano, Gil, Edu Lobo, Geraldo Vandré, entre outros, e pelo jornalismo que praticava, num grande jornal como o Última Hora, mostrou-se super simples e generoso, presenteando-o e aos demais colegas de redação com diversos livros e também com o conselho de que fossem bons em tudo e que se preparassem para o pior. “Na hora eu não saquei nada, mas, depois, entrevistando Deusdeth Nunes, o popular Garrincha, jornalista, humorista, bancário, ele me disse que os dias da gente estavam contados na página Comunicação, foi quando liguei uma coisa a outra e tomei a liberdade de publicar um texto anunciando que a qualquer momento a página Comunicação poderia dançar do jornal”.
Trata-se do profético editorial (sic) Os Carbonários, assinado por Durvalino Couto Filho & Edmar Oliveira: “Pra Dizer Adeus. Por meio desta informamos a todos os leitores da Comunicação que ela pode acabar. Isso não é novidade para nós, Deusdeth Nunes já havia dito na entrevista que nos concedeu há algum tempo: 'Eu acho a página de vocês muito válida, vocês são bacanas e precisam continuar nisso, apesar de saber que não vai demorar muito o que vocês estão fazendo. Mas, se demorar, vai ser bom. Talvez vá enjoar de trabalhar de graça. Seu futuro é se encostar num jornal que lhe possa pagar algo, senão você vai pra cucuia. Mas a experiência é boa'. Deusdeth foi o nosso profeta e acertou em cheio as previsões a nosso respeito. Resta-nos agradecer ao Machadão, ao Pereira, ao Viana, à Aldina, Marcelina, Lelês, Pimentel, Elisabeth, Torquato (Hei, bicho, cadê tu?), ao Osias e Cristino, a todos os nossos entrevistados e ao Evandro Cunha, esse bicho que aguentou a gente aqui desde outubro. Se faltou alguém, vá desculpando, meu querido, foi sem querer. Vamos continuar meio cabreiros, mas vamos. Mas não se esqueça: Comunicação pode acabar. Nosso cordial ‘Bye’”. (O texto, datado de 21 de março de 1971, trazia como subtítulo: “Página Comunicação – Irreverência Comprovada pelo Ibope”. A página circulou ainda até dia 3 de outubro - nº 87).
Paulo José Cunha informa que “O professor Camilo Filho pouco andava na redação, e quando andava não se metia com a gente. O barato dele era saber que tinha um jornal e que este jornal estava andando. E quando ele abria o jornal, que se deparava com a nossa página, uma página feita pelos ‘malucos hippies’, como ele nos chamava, porque todo mundo era hippie naquela época, falando gíria, cabelão, quando ele via a nossa página ele achava o maior barato. O Camilão era um liberal. Gente boa. O surgimento da página Comunicação foi um barato. Torquato Neto tomou conhecimento no Rio de Janeiro, porque, de quando em vez, eu mandava coisas do Piauí pra ele ler e ficar informado, ficar mais ou menos sabendo do que estava acontecendo por estas bandas. Numa das vezes que ele veio aqui, disse que queria escrever na Comunicação, que ele achava um canal interessante para expor suas ideias. Fizemos várias entrevistas com ele nos acompanhando, aquela bagunça, ele participava parecendo um menino medonho de alegre. Fizemos também uma entrevista com ele mesmo. Foi na época dos filmes. Ele começou a transar esse negócio dos filmes. Era tudo ao mesmo tempo. Nós resolvemos fazer o Gramma 2, mas estava tudo lento e tal. O Gramma 2 não saía, até que chegaram as páginas de Torquato Neto, que vieram já diagramadas. Eu não sei como é que ele diagramou lá no Rio de Janeiro. Mas a decisão de fazer o jornal só saiu porque ele morreu. Nós dissemos, agora vamos fazer porque é coisa de homenagem a Torquato Neto. Esse número a gente tem que fazer, até porque as páginas estão prontas. E o Gramma 2 saiu”.
GRAMMA – Jornal pra Burro
Paulo José Cunha, ao descobrir o mimeógrafo, em Brasília, escreve ao amigo Edmar Oliveira: “Olha, aqui tem uma máquina, compadre, que se a gente cuspir sai”. O mimeógrafo era, na época, a grande novidade, e eles tiveram a ideia de fazer um jornalzinho usando essa nova possibilidade de impressão, até mesmo porque era mais barata e disponível. E assim nasceu o Gramma, que se não foi o primeiro jornal mimeografado, “para nós foi o primeiro cuspe”, diz Edmar Oliveira, em depoimento ao autor .
O Gramma, porém, teria vida breve, deixou de circular no segundo número. O primeiro saiu em fevereiro de 1972, mimeografado na NG Máquinas, em Brasília. Trazia no expediente: “gramma, jornal pra burro, é feito por edmar oliveira, paulo josé cunha, durvalino filho, carlos galvão, chico pereira, arnaldo albuquerque, marcos igreja, haroldo barradas, geraldo borges, fátima mesquita, e conta com a colaboração de etim, ary sherlock e mais um bocado de gente. carivaldo [marques] foi quem fez as fotos. a mãe da gente falava por que a gente não estava na hora do almoço. as minas do pessoal fizeram um levante, mas esse treco tinha que sair. a redação passou de casa em casa dos amigos, e depois de muitas brigas entre a turma, até rifa de livros, aparelho de barbear e outros bregueços pessoais (pra arranjar o tutu), mandamos a papelada pra brasília. lá foi feito e aqui está, como vocês estão lendo. se cr$ 1,00 custa muito pra vocês, saibam que custou muito mais pra gente. terra de antares, carnaval de setenta e dois. amém”.
O lançamento aconteceu no Gelatti, que nasceu sorveteria e virou bar na Avenida Frei Serafim, a principal da cidade. Era uma parceria entre Paulo Cunha, pai de Paulo José Cunha, e Rui Berger, pai de Renato Berger, duas figuraças que se davam com todo mundo. Logo adotado pela turma jovem, os artistas principalmente. Servia de palco para lançamento de tudo, até de jornal marginal. Com o apurado da venda, o pessoal foi curtir o sucesso da publicação em Sete Cidades, aprazível e mística região encravada em Piracuruca. Enquanto eles estavam lá, numa boa, aqui, a Polícia Federal os procurava na casa de Edmar Oliveira, que era também a sede do jornal, conforme o expediente do mesmo (Avenida Campos Sales, 1898).
“A equipe do jornal Gramma se reunia ora no Bar Farmácia, ora no Bar Santana, ora na grama da Igreja de São Benedito, nas redondezas do Palácio de Karnak, sede do governo estadual. Como o jornal, em quase a sua totalidade, era redigido na grama da Igreja, daí nasceu o nome. A Polícia Federal, entretanto, achava que o nome do jornal piauiense era por causa do jornal cubano Granma. Além do mais, a antepenúltima página do jornal, feita por mim, é uma estrada, na contramão, com nuvens carregadas, uma placa de coca-cola, uma lata de lixo, e o famoso verso de Olavo Bilac: Não verás País nenhum como este. A ideia do verso foi de Haroldo Barradas, que virou médico sanitarista”, informa Arnaldo Albuquerque.
Quando retornaram de Sete Cidades, receberam intimação para comparecer à sede da Polícia Federal. Edmar Oliveira e Durvalino Couto Filho foram. Arnaldo Albuquerque não foi porque na noite anterior tomou um porre homérico e ficou formindo (fornicando e dormindo) num dos cabarés da Paissandu, famosa região de prostíbulos à época, em Teresina. No outro dia, às 17 horas, quando estava trabalhando no departamento de arte do jornal O Dia, foi retirado da redação, à força, pelo Dr. Elias, da Polícia Federal. “Fui bater ponto na PF,” ironiza.
Durvalino Couto Filho revela que “o jornal teve o nome de Gramma com dois emes por imposição do Carlos Galvão. Na Polícia Federal fomos perguntados por que tínhamos desenhado o Congresso Nacional de cabeça para baixo, por que tínhamos insinuado que o país tinha sido vendido para a coca-cola, por que considerávamos o país um lixo, o que nós sabíamos de Cuba, de Fidel Castro, de comunismo, entre outras perguntas capciosas e burras. A história do Congresso Nacional de cabeça pra baixo é porque Arnaldo Albuquerque colocou dois traços brancos, dividindo a estrada no meio. Com muita imaginação, e isso a Polícia Federal tinha de sobra, ficou parecendo o Congresso na situação descrita por eles. Claro que negamos tudo. Em contrapartida, tivemos uma das maiores lições sobre Cuba, Fidel Castro, comunismo, e, de quebra, pegamos no Granma cubano, que só sabíamos da existência por meio de informações precárias. Explicamos que o nosso jornal era de poesia e arte. Os caras disseram: 'olha, aí, rapaziada: cuidado porque estamos de olho em você'. E nos despacharam”.
Pereira diz, porém, que Gramma, com dois Emes foi por conta do Jornal do Commércio, onde ele trabalhava.
O certo é que o destaque do primeiro número foi uma entrevista com o bancário (Banco do Brasil), jornalista, escritor, cordelistas, ator, produtor cultural cearense Deusdeth Nunes, o popular Garrincha, há muito tempo radicado em Teresina. O mais badalado jornal musical da época, o famoso Rolling Stone, talvez por influência de Torquato Neto, deu uma chamada: “o alternativo da rapaziada do Piauí era um tremendo barato”.
Gramma foi destaque no Verbo Encantando (Salvador - Bahia), que o saudou como um jornal underground, numa linguagem própria da época.
O segundo número saiu em novembro de 1972 , com 20 páginas, frente e costa, em papel chamex. Está envolto por uma tira de papel, que contém o seguinte conselho, típico do grupo e da época: “MANQUEM-SE e cortem aqui e faça um indicador de página”. Dentro, entre a página do expediente e outra de autoria de Edmar Oliveira (Epitáfio sobre os movimentos – ou monumento à revisão de ordem) há uma meia folha e nela, escrita à mão, a pergunta: “por que você está lendo isso?”. A capa é uma foto de duas crianças mexendo numa lata de lixo, lembrando o poema Bicho, de Manuel Bandeira. (N.A.: Durvalino esclarece que o segundo número saiu mais como um espécie de homenagem póstuma a Torquato Neto).
Expediente “diretores presidentes: Edmar Oliveira/Durvalino e Antônio Noronha. Editor Chefe: Paulo José Cunha. Diretor de Arte: Arnaldo Albuquerque. Colaboraram nesse número: em Teresina, o Edi e o Noronha, em Brasília, o PêJosé, o Durval e o Renato Estrela; em Belô, o Haroldo Barradas; no Rio de Janeiro, o Arnaldette, o Galvão e o Torquato Neto.” Havia os bons fluídos. “Recebemos os nossos bons fluídos dos grammus - Fatinha, France, Marcê e Claudete e Conceição em Terê, tem o Xico Pereira no Recife, o Etim em Fortaleza e a querida Aldina na Bahia e Luiz Otávio, Hélio Oiticica, Pimentel e Figueiredo, tudo perdido por aí, transando milhares, mulheres, milhões - louquíssimos. A PLAC - Piauí Lacticínios S/A foi quem financiou este número. Nosso abraço ao gramau-gente-legau Aerton Fernandes. Escrevam pra gente contando as coisas: nosso endereço é Av. Campos Sales, 1898. 64.000, Teresina (Terra de Antares) Piauí”.
Torquato Neto colaborou com dois artigos no segundo número. Na página três, sem título, é publicado o roteiro do Terror da Vermelha, filme em super-8, que fizera com a turma. Na página cinco, com VIR VER OU VIR, que se encontra também no livro Os Últimos Dias de Paupéria.
Gramma 2 foi feito em homenagem a Torquato Neto. “Torquato Neto esteve aqui, em Teresina, de julho a setembro, tendo viajado para o Rio de Janeiro acompanhado pelo Carlos Galvão. Eu tinha ido antes, em agosto. Era a tentativa de ele formar um grupo de piauienses, em substituição ao grupo baiano, que ele nunca esqueceu, na verdade. Por isso não demos certo”, diz Arnaldo Albuquerque, em depoimento ao autor.
Estado Interessante
Alguns pesquisadores afirmam que Torquato Neto colaborou no suplemento Estado Interessante, do jornal O Estado, de propriedade do jornalista Helder Feitosa. Na verdade, o suplemento, que durou 15 números, circulando de 26 de março a 16 de julho de 1972, não registra texto de Torquato Neto. O suplemento era feito, inicialmente, por Paulo José Cunha, Durvalino Couto Filho (sugeriu o nome), Edmar Oliveira, Noronha Filho, Marcos Igreja, Arnaldo Albuquerque, Alberoni Lemos e Galvão, entre outros. Mas, em pouco tempo, houve um racha.
“Helder Feitosa queria que o Estado Interessante, já lido mais que o próprio jornal O Estado, fosse autofinanciado, com propaganda e até matéria paga, coisa que rejeitamos de imediato e pulamos fora. Helder Feitosa passou, então, a editoria do suplemento para Marcos Igreja, que aceitou numa boa. Foi quando começamos a fazer o Hora Fatal, dentro do jornal A Hora, de propriedade do jornalista Paulo Henrique de Araújo Lima”, esclarece Arnaldo Albuquerque.
O Estado Interessante registra, ainda, colaboração de Jari Mosil (Arimatéa Moreira), Luís Cláudio, Alzira, Rubem - o Gordo, Maninho, Toinho e France, Zé Alencar, Chico Pereira, Etim, Raimundo Wilson, Josias Carneiro da Silva (Gente e Arte), Antônio Linhares (Transas Universitárias) e Paulo Vilhena. A diagramação era de Machado Neto.
Hora Fatal
Hora Fatal, que passou a ser chamado pela turma do Estado Interessante de grupo “do outro lado da rua”, saiu de junho a julho de 1972, com 4 números. “Torquato Neto colaborou em todos eles, numa boa, com a gente”, informa Arnaldo Albuquerque. Por um bom tempo, as duas alas ficaram a trocar farpas uma na outra e foi a grandeza de Durvalino Filho, mandando, de Brasília, onde estudava Comunicação Social, uma carta pedindo paz, que serenou os ânimos.
Escorpião encravado na própria ferida
Torquato Neto é de escorpião (ascendente em Touro e Lua em Virgem), signo dos que não temem a morte, pelo contrário, buscam-na constantemente. Na sua curta trajetória de vida, buscou-a cinco vezes. Numa delas, cortando os pulsos na casa de Caetano Veloso, que, supersensível, ficou bastante abalado. Até que se mandou num rastro de gás logo após comemorar o seu aniversário, no dia 10 de novembro de 1972.
Ana Maria, viúva de Torquato Neto, revela que mesmo estando perto, convivendo intimamente com ele, não percebia com clareza o que estava se processando na cabeça do poeta. Aos poucos, porém, ela foi “reunindo as peças”. “Ele tinha, por exemplo, uma enorme coleção de literatura de cordel. Devagarinho, ele passou adiante um por um. Começou a queimar os textos, alguma coisa eu ainda consegui salvar, mas um dia ele quebrou a máquina de escrever e disse que nunca mais escreveria” diz ela. Estas atitudes foram tomadas semanas antes dele dar o basta.
Carlos Calado, no livro Tropicália - a história de uma revolução musical, Editora 34, SP, 1997, página 291, relata que “as altas doses de álcool que Torquato consumia diariamente, já na época da Tropicália, certamente acentuaram o estado depressivo e autodestrutivo que passou a perturbá-lo nos últimos quatro anos de vida. Por vontade própria, chegou a procurar clínicas especializadas para se desintoxicar. Foram nove internações, no Rio de Janeiro, e até em Teresina, no Piauí, onde nascera”.
Em Teresina, Torquato Neto foi “hóspede”, várias vezes, do Sanatório Meduna, criado pelo Dr. Clidenor de Freitas Santos.
Os últimos Dias de Paupéria
O poeta e tradutor Paulo Leminski, na Folha de São Paulo, edição de 7 de novembro de 1982, no artigo, sob o título, Os Últimos Dias de um Romântico, informa que, como “Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros. O livro de Torquato é esse Os últimos dias de Paupéria, muito bem editado por Waly Salomão, vitrina dos vários possíveis de Torquato; em letra, poesia escrita, ensaios jornalísticos, fragmentos de diário, retrato estilhaçado de um poeta por outro poeta”.
O livro Os Últimos Dias de Paupéria foi publicado em 1973, pela Livraria Eldorado Tijuca Ltda. Trazia como apêndice um compacto simples, com Três da madrugada e Todo dia é dia D, ambas musicadas por Carlos Pinto, cantadas por Gal Costa e Gilberto Gil, respectivamente. O disco foi uma cortesia da Philips. A parte gráfica do livro foi cuidada por Ana Maria. A capa tem foto de Torquato Neto, onde se lê trecho do poema Cogito: “Eu sou como eu sou / Vidente / E vivo tranquilamente / Todas as horas do fim” escrito de próprio punho. Como prefácio, uma carta que Ana Maria recebera do poeta e tradutor Augusto de Campos, em face da morte de Torquato Neto. O livro, com 116 páginas, teve uma tiragem de 5 mil exemplares. Logo esgotada.
Em 1982, como parte das homenagens a Torquato Neto, nos seus 10 anos de morte, nova edição do livro, revista e ampliada (440 páginas), foi publicada, desta feita pela Editora Max Limonad.
Ana Maria explica que há um segundo título (Do lado de dentro -, impresso na segunda página, expressão sugerida pelo próprio Torquato Neto), como que a renomear um livro cujas agregações (críticas, fotos, poemas, cartas e letras de músicas), o faziam quase quatro vezes maior do que a primeira edição.
- Para esta edição, Waly Salomão encomendou vários textos espe-ciais. Há um poema sobre Torquato Neto escrito por Haroldo de Campos, um texto de Luiz Otávio Pimentel, cineasta muito citado na Geleia Geral, uma entrevista com Décio Pignatari. Waly também colaborou com um poema visual, que ele chamou de babilaque, dedicado a Torquato. A capa é do artista gráfico Oscar Ramos, autor do livro Rio de cor.
O lançamento ocorreu às 18:30 horas do dia 9 de novembro, na Funarte, no Rio. Foram exibidos o filme Terror da vermelha e outros curtas.
A historiadora Heloísa Buarque de Hollanda escreve, em Impressões de Viagem: CPC, Vanguarda e o Desbunde, que os “seus textos, reunidos e publicados após a sua trágica morte no volume Os últimos dias de Paupéria, foram por algum tempo lidos como uma bíblia pelas novas gerações”.
O Fato e a coisa e Juvenílias
O poeta Torquato Neto deixou dois livros de poemas prontos para serem publicados - Pesinho pra dentro, Pesinho pra fora e O fato e a coisa. - “Eu sempre escrevi muito, principalmente poesia. Mas nunca pensei em publicar livros. Eu preferi utilizar a poesia na música. Se agora estou tentando preparar este livro - é a pedido de meus amigos. Aliás, eu nem sei se vou terminá-lo todo, porque eu tou mais interessado em cinema. Ele chama-se Pesinho pra dentro, Pesinho pra fora”. Este livro estava previsto para ser editado dentro da coleção na Corda Bamba, do José Álvaro Editor, sob a direção de Waly Salomão e José Carlos Capinan.
- “A Corda bamba é isso aí, amizade. É uma oportunidade que um editor tá dando pra que jovens poetas consigam mostrar, lançar as suas produções experimentais”.
Pela Corda Bamba saiu o livro Me segura que eu vou dar um troço, de Waly Salomão. E estava prevista ainda a publicação de Fragmentos de sabonete, de Jorge Mautner, e um livro de Bivar.
Quanto ao O Fato e a Coisa, o Dr. Heli Nunes me passou uma pasta com cópias de 29 poemas de Torquato Neto, com anotações marginais (ótimo, bom) feitas a lápis por Walmyr Ayalla, autor do livro Moderna Poesia Baiana, Tempo Brasileiro, 1967. Eis o índice, com as seguintes divisões: Posto - Ofício; posto; poema porque é preciso; os falsos deuses; poema do aviso final - Pedra Lascada - Momento na calçada; dois poemas ao chope; notícia; insônia; o velho; os mortos; a mesa - Amor em dor maior; A descoberta do mundo, pranto na quarta-feira; poema essencialmente noturno; poema para ninar; poema silencioso dentro da noite; posição de ficar - O fato & a coisa; apresentação da coisa; capítulo um; o fato; dia; a crise; edição da manhã; explicação do fato; poema desesperado; momento; poema estático para...; panorama visto da ponte.
O poeta, cordelista, editor e produtor cultural Cineas Santos, da Oficina da Palavra, de Teresina, esteve com o livro completo para publicar, mas desistiu da ideia. “As viúvas atrapalharam tanto, que desisti”.
O jornalista Wilson Fernando, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Teresina e ex-Secretário de Comunicação do Governo do Estado, também tinha cópia completa. Após sua morte, a 6 de outubro de 1992, procurei sua filha, a jornalista Andréa Rêgo, atualmente residente em Paris, que me contou a seguinte história: um ladrão levou de sua residência, entre os objetos valiosos, uma caixa com poemas, cartas, recortes de jornais e revistas e diversas fotos do poeta. Entre elas, uma dele, Torquato Neto, abraçado com Maysa, de quem era fã.
Com o acervo enviado por Ana Maria, George Mendes publicou O Fato e a Coisa e Juvenílias. Novembro de 2012. UPJ Porduções. Organização de George Mendes, Durvalino Couto Filho, Dina Falcão Costa e Thiaho E.
26 Poetas Hoje
Em 1976, a professora e historiadora Heloísa Buarque de Hollanda organizou a antologia 26 Poetas Hoje, Editora Labor do Brasil, incluindo alguns dos poemas de Torquato Neto que, segundo o crítico Nelson Ascher, “atirava para todos os lados - se bem que seja verdade que, em todos os lados, havia alvos. Tornou-se, contudo, fácil confundi-lo com o grosso da pretensa poesia escrita da época. Ele foi até incorporado a uma antologia chamada 26 Poetas Hoje. Só que nada tinha a ver com os outros 25 poetas-ontem (por onde andam?), cujo único projeto parecia justamente ser o de combater qualquer projeto”.
Nothing the Sun Could not Explain
Em maio de 1997, em Los Angeles (Estados Unidos), os poetas e críticos Michael Palmer, Régis Bonvicino e Nelson Ascher organizaram, com a participação de João Almino, professor de literatura brasileira em Berkeley e Stanford (Califórnia), a primeira antologia bilíngue da poesia brasileira dos últimos trinta anos - Nothing The Sun Could Not Explain, publicando quatro poemas de Torquato Neto, que faz companhia a Paulo Leminski, Ana Cristina César, Duda Machado, Waly Salomão, Júlio Castanon Guimarães, Lenora de Barros, Horácio Costa, Carlos Ávila, Régis Bonvicino, Josely Vianna Baptista, Nelson Ascher, Age de Carvalho, Ângela Campos, Carlito Azevedo, Frederico Barbosa, Ruy Vasconcelos de Carvalho e Claudia Roquette-Pinto.
A edição saiu pela Sun & Moon Press, de São Francisco, que se vinha firmando no mercado norte-americano como uma alternativa às editoras comerciais. Para o editor Douglas Messerli, que já lançou também Nove Novena, de Osman Lins: havia a expectativa de que iniciativas como esta despertaria maior interesse pela poesia brasileira.
Para Régis Bonvicino, a intenção da obra foi “fazer uma leitura da poesia brasileira livre da militância dos movimentos estéticos. As poesias foram escolhidas porque são boas”. (Fertilizações Culturais, depoimento a Marcos Flamínio Peres, na FS, Mais, 4 de maio de 1997 - 5-10).
No Brasil, Nothing The Sun Could Not Explain foi lançado às 19 horas dos dias 22 e 26 de maio de 1997, no Memorial da América Latina (Avenida Mário de Andrade, 664), em São Paulo, em debate que contou com a participação de Douglas Messerli, Nelson Ascher, João Almino, do professor Raul Antelo, da psicanalista Miriam Chnaiderman, Régis Bonvicino e Michel Palmer.
Um dos poemas escolhidos de Torquato Neto, para a antologia, foi Let's play that, que Jards Macalé já havia musicado.
LET’S PLAY THAT
when I was born
a crazy, very crazy angel
came to read my palm
it wasn’t a baroque angel
it was a crazy, crooked angel
with wings like a plane
and behold, this angel told me,
pressing my hand
with a clenched smile:
go on, pal, sing off key
in the happy people’s choir
go on, pal, sing off key
in the happy people’s choir
(tradução Dana Stevens)
Navilouca, edição primeira e única
Torquato Neto e Waly Salomão coordenaram a editoração da revista Navilouca, considerada pioneira da vanguarda do movimento poético nacional e a mais importante publicação do conjunto pós-tropicalista. Foi programada para ser edição primeira e única, como está escrito na capa. Co-patrocinada por Caetano, Navilouca somente seria publicada em 1975. Torquato só conheceu o resultado da revista através de fotolitos.
- Como editor, estava montando junto com Waly Salomão a Navilouca, que Caetano viria a co-patrocinar depois, em homenagem e reconciliação póstumas. Com sua morte prematura, completou o retrato falado de um cult-artist. (Décio Pignatari - depoimento a Régis Bonvicino).
Navilouca, de acordo com Heloísa Buarque de Hollanda, vem do Stultifera Navis, “navio que na idade média circundava a costa recolhendo os idiotas da família, desgarrados e fora de ordem”. Navilouca reuniu artigos de Lígia Clark, Hélio Oiticica, Luciano Figueiredo, Oscar Ramos, Chacal, Caetano Veloso, Augusto e Haroldo de Campos, entre outros.
Waly Salomão informa que “quando editávamos juntos a Navilouca, edição primeira e única, Torquato me apareceu um dia, depois de uma internação em sanatório, com o cabelo completamente tosado, um skin head avant la lettre, e eu sofri uma premonição terrível e insuportável de uma ovelha negra tosada se oferecendo ao cutelo do matadouro”.
O Poeta era um homem cheio de vida e de planos. Empolgado com a ideia da revista Navilouca, que estava organizando com os concretistas de São Paulo, seguiria para aquela cidade brevemente. Sua cunhada Ana Cristina comentava ontem, em lágrimas, que ele amava demais a mulher e o filho, buscava um aprimoramento constante no campo profissional e “não tinha por que morrer”. (FSP. Domingo. 8.11.1992, Mais -7).
Paulo Leminski, tratando da efervescência poética dos anos 70, dá um conselho aos navegantes: “Consolem-se os candidatos. Os maiores poetas (escritos dos anos 70) não são gente. São revistas. Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e o charme policromático de uma Navilouca? A força construtiva de uma Polem, Muda ou de um Código? O safado pique juvenil de um Almanaque Biotônico Vitalidade? A radicalidade de um Pólo Cultural/Inventiva, de Curitiba? A fúria pornô de um Jornal Dobradil? E toda uma revoada de publicações (Flor do Mal, Gandaia, Quac, Arjuna), onde a melhor poesia dos anos 70 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao Sucesso ou ao Nada. (...) Pequenas revistas, atípicas, prototípicas, não típicas, coletivas, antológicas, representando um grupo ou tendência (‘formalistas’, ‘pornô’, ‘marginais’), onde predominou a faixa etária dos vinte aos trinta anos. Em comum a auto-edição (samizdat), todo mundo juntando grana para comprar a droga da poesia”. Literatura Comentada – Poesia Jovem Anos 70 - São Paulo: Abril Educação, 1982.
Roteirista, diretor e ator de cinema
Em Salvador, participou da direção de Barravento (1961, iniciado por Luiz Paulino dos Santos e, depois de um incidente de filmagem, concluído por Glauber Rocha). No Rio de Janeiro, ele e Ana frequentavam assiduamente o cinema Paissandu, que tinha uma programação que privilegiava filmes europeus. Entre suas preferências estavam os filmes de Luchino Visconti, Luís Buñuel, Jean-Luc Godard e o americano Nicholas Ray; entre seus atores prediletos, Toshiro Mifune e Marcelo Mastroianni.
Paulo José Cunha, em depoimento ao autor, ressalta que “quando Torquato se aventurava por outras linguagens estava fazendo cinema. Suas letras são, na realidade, roteiros cinematográficos. Ele era mais cineasta do que, propriamente, poeta, porque um cara para ser cineasta não perde a poesia. Ele gostava mais das artes visuais, áudio visual, por exemplo.”
Externando tal paixão, além de Barravento, Torquato Neto roteirizou, dirigiu e participou dos seguintes filmes: Moleques de Rua (Super-8, com Alvinho Guimarães: Caetano Veloso e Alvinho Guimarães chegaram de Salvador para passar uma temporada no Rio e foram calorosamente recebidos por Torquato, que tratou de promover o lançamento do curta no Rio. Os três se aproximariam bastante, articulando novos filmes e músicas), Canalha em Crise (1962 - 1965, do piauiense Miguel Borges, locado no Lamas, restaurante carioca no Largo do Machado, ao lado do Cine São Luís), Nosferato no Brasil (1971, Super-8, com Ivan Cardoso), A Múmia Volta a Atacar (1972, Super-8, com Ivan Cardoso), Adão e Eva, do Paraíso ao Consumo (março de 1972, Super-8, roteiro: Edmar Oliveira. Direção: Galvão. Câmera: Arnaldo Albuquerque. Produção: Noronha Filho. Torquato Neto contracena com Claudete Dias, hoje pós doutora - aposentada em História - Universidade Federal do Piauí. O filme foi perdido, restando apenas algumas fotografias tiradas pelo Dr. Noronha Filho. Para Durvalino Couto “o fato de ser um filme perdido lhe confere um imenso charme. Mas é tristíssimo esse fato. Uma amiga do Noronha ia para a Europa, se não me engano para fazer pós-graduação, e o doutor viu nisso uma chance para fazer cópia nova do filme, pois este estava bastante deteriorado. A vaca perdeu o filme. Graças a Deus esqueci o nome dela.”), Dirce & Helô (de Luiz Otávio Pimentel, Rio, 1972), o Terror da Vermelha ou O Faroesteiro da Cidade Verde ou Só Matando (junho de 1972, Super-8; Torquato Neto é o diretor, roteirista e o contador de sua história; Edmar Oliveira é o ator principal. Paulo José Cunha também participa, fazendo ponta). Sobre o Terror da Vermelha, Edmar Oliveira, em carta aberta ao autor, revela que “neste filme Torquato faz um desfile de seus fantasmas nos colocando para ajudar a contar a história. Muito me honra ter sido seu alter ego. E tem a cena em que o personagem Torquato mata o Torquato real. Absolutamente genial no que o anjo torto enunciava e que não foi percebido por nenhum de nós naquele momento.”
Projetos não concluídos: Os Últimos Dias de Paupéria, Fogo (sobre os incêndios de Teresina, na década de 1940, quando vivíamos sob a ditadura Vargas e a intervenção federal no Piauí do médico Leônidas de Castro Melo, com o seu comandante militar major Evilásio Gonçalves Vilanova, das bandas de Caxias - Maranhão, homem de confiança total de Felinto Müller), Idade, Cidade Verde e Crazy Pop Rock.
Roteirista e produtor de shows musicais
Torquato Neto fez os roteiros dos shows Pois é, Maria Bethânia, Ensaio Geral, Frente Única – Noite da Música Popular Brasileira, além de algumas produções para a cantora piauiense Lena Rios, a Barradinha, que alcançou sucesso nas noites cariocas atuando no Bigode do Meu Tio, Sereno da Paróquia, Monsieur Pujol, Number One e no Teatro Opinião.
Pois É
Pois é teve direção geral de Nelson Xavier; direção musical de Francis Hime, com produção de Suzana de Moraes. Torquato fez o roteiro em parceria com Caetano Veloso e José Carlos Capinan. Maria Bethânia apresentou-o ao lado de Gilberto Gil e Vinicius de Moraes, no Teatro Opinião, no Rio, em setembro de 1966.
Caetano Veloso informa que “o show era em grande parte sobre Vinicius de Moraes, e cada um de nós tinha uma visão particular do poeta. Nos ensaios a gente quase se pegava a socos. Bethânia e Vinícius são duas pessoas fabulosas. Bethânia eu adoro. Vinicius, eu respeito. Porém, ambas são duas pessoas difíceis de se trabalhar. Com eles, precisamos, sempre, de toda a nossa capacidade de trabalho”. (O Globo, 11 de novembro de 1966).
Ensaio Geral
O supershow Ensaio Geral, aproveitando o título da letra de Gilberto Gil, Ensaio Geral (de 1966), foi apresentado, de janeiro a maio de 1967, na TV Excelsior, de São Paulo, tendo como um de seus apresentadores Gilberto Gil, “um dos contratados para o numeroso elenco de 40 artistas, que incluía uma orquestra sob a regência de Radamés Gnattali, outra sob a batuta de Chiquinho de Morais, dois conjuntos, o Tamba Trio e o trio de Edson Machado, e mais uma cacetada de cantores, como Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Tuca, Sidney Miller, além de figuras de proa do Época de Ouro, como Jacob do Bandolim, Ismael Silva, Cyro Monteiro e outros”, anota Zuza Homem de Mello (A Era dos Festivais. São Paulo, Editora 34, 2003, páginas 174 e 175).
Ensaio Geral foi idealizado por Roberto Palmari, que logo convocou Moracy do Val, Luiz Vergueiro, Franco Paulino e Chico de Assis para criarem uma série de programas para a TV Excelsior, na tentativa de barrar o avanço da TV Record exatamente por causa de seus musicais.
Frente Única
Frente Única – Noite da Música Popular Brasileira, que lembra o chavão da Frente Ampla entre Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart, foi bolado pelo astuto Paulo Machado de Carvalho, chefão da Record, que queria tirar proveito comercial do conflito existente entre O Fino da Bossa, de Elis, e o Jovem Guarda, de Roberto Carlos e sua turma.
A novidade seria o revezamento semanal feito pelos apresentadores - Elis Regina, Jair Rodrigues, Wilson Simonal, Chico Buarque, Nara Leão, Gilberto Gil e Geraldo Vandré, criador do conceito do programa, que seria dirigido por Solano Ribeiro, com estreia marcada para o dia 26 de junho de 1967, a cargo de Elis Regina. O ponto alto foi o do dia 24 de julho, tendo Gilberto Gil como apresentador, sob direção de Goulart de Andrade, com roteiro assinado por Torquato Neto e Caetano Veloso, que estavam hospedados no Hotel Danúbio, onde trabalhavam na elaboração do programa de Gilberto Gil, que ali também estava hospedado, com Nana Caymmi. Eram vizinhos de quarto, ainda, Geraldo Vandré e o bailarino americano Lennie Dale, que ensinara Elis Regina a dançar no Beco das Garrafas.
Passeata contra as guitarras elétricas
Numa tremenda jogada de marketing, a direção da emissora, aproveitando o clima de rivalidade entre os dois grupos – MPB e Iê-Iê-iê, teve a ideia de organizar uma passeata, uma espécie de ato público em defesa da MPB, a genuína música brasileira, que estava ameaçada pelo estrangeirismo do Iê-Iê-iê. O ato teria a presença de todos os apresentadores e aconteceria no dia 17 de julho de 1967. Caetano Veloso e Nara Leão não concordaram. Gilberto Gil quis recusar, mas, como nutria uma paixão secreta por Elis Regina, e se achava devedor dela e do seu O Fino, pelo sucesso que alcançara com Louvação, não resistiu ao chamado da Pimentinha. Chico Buarque marcou presença, mas, envergonhado, em pouco tempo, sumiu à francesa.
Participaram da “Passeata Contra as Guitarras Elétricas” Elis Regina, Gilberto Gil, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Zé Kéti e os integrantes do Zimbo Trio e do MPB-4, liderando centenas de pessoas, que saíram do Lago de São Francisco (SP), atrás de uma banda da Força Pública e empunhando faixas / cartazes e gritando palavras de ordem contra a guitarra elétrica, a dominação estrangeira e a música jovem e alienada, indo rumo ao Teatro da Brigadeiro Luís Antônio, onde Chico Buarque, da janela (como a sua Carolina) assistiu à sua chegada. Lá dentro, os fãs de Elis Regina estenderam uma faixa para a “Rainha da Música Popular Brasileira”. O espetáculo foi encerrado com os cantores, entre os quais Juca Chaves e Ataulfo Alves, cantando com o público o hino da Frente Única: “Moçada querida / cantar é a pedida / cantando a canção / da pátria querida / cantando o que é nosso / com o coração...”, conforme Zuza Homem de Mello, em A Era dos Festivais. São Paulo, Editora 34, 2003, p. 181).
Da janela do apartamento do empresário Guilherme Araújo, no Hotel Danúbio, Nara Leão e Caetano Veloso assistiram à passagem da passeata e se divertiram muito; achavam tudo aquilo uma grande bobagem, assinala Nelson Motta (em Noites Tropicais - solos, improvisos e memórias musicais. Editora Objetiva, RJ, 2000, páginas 133 e 134).
Nara Leão, entretanto, comentou com Caetano Veloso: “Isso mete até medo. Parece uma passeata do Partido Integralista (a versão brasileira do nazi-fascismo, um movimento católico-patriótico-nacionalista de extrema direita nos anos 30, do qual alguns antigos expoentes inclusive apoiavam o governo militar).” (Caetano Veloso: Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, página 161).
A gota d’água que faltava para a guerra ganhar mais explosão veio com a ideia de Torquato Neto e Caetano Veloso em homenagear Roberto Carlos no programa que seria apresentado por Gilberto Gil. Além de Geraldo Vandré, Chico Buarque, Nara Leão, Elis Regina, Jair Rodrigues, Wilson Simonal, também participariam do programa as cantoras Gal Costa, Maria Bethânia, Nana Caymmi, Marília Medalha, Elizeth Cardoso, e mais Edu Lobo, Toquinho, Zimbo Trio e os integrantes do MPB-4.
A homenagem a Roberto Carlos se daria com Maria Bethânia entrando no palco de minissaia e botinhas, empunhando uma guitarra elétrica. Acompanhada por um conjunto de Iê-Iê-iê, cantaria, com ele, Querem Acabar Comigo. Roberto Carlos havia cativado Maria Bethânia ao cantar Anda Luzia, composição de João de Barro, uma gravação do início da carreira da baiana. Foi ela quem, no começo de 1967, fez com que Caetano Veloso assistisse, na casa da avó de Dedé Gadelha (à falta de tv, no Solar da Fossa - hoje Shopping Rio - onde morava) ao Jovem Guarda, programa que Roberto Carlos comandava, com Erasmo Carlos e Wanderléa, desde 1965, pela Record. Fascinado, Caetano Veloso exclamou: “puxa, quanta vida, quanta vida. Estou num ambiente de fantasmas.” O que mais chamou a atenção do baiano foi o visual da turma, fora do convencional. Desde então, tornou-se admirador declarado do programa Jovem Guarda, chocando os coleguinhas da MPB - sigla que ele abomina por ser “discriminatória”.
Geraldo Vandré, não se sabe como, acabou tendo acesso ao roteiro às vésperas da estreia do programa que homenagearia Roberto Carlos. E sem demora, de forma furiosa, foi ao quarto de Gilberto Gil, que estava com Torquato Neto e Caetano Veloso, assustando-os. Gilberto Gil foi quem ficou mais abalado. Geraldo Vandré gritava, esmurrava o ar e as paredes, xingava dizendo que aquilo era uma puta traição, uma punhalada muito grande pelas costas prestar homenagem a Roberto Carlos, ainda mais incluindo uma guitarra elétrica, num programa de televisão criado para valorizar a música popular brasileira frente à crescente invasão alienista do Iê-Iê-iê. Os três, então, optaram por mudar a programação.
Maria Bethânia, sem saber de nada, ainda chegou a ensaiar, usando botas e minissaia, com uma guitarra nas mãos, a sua apresentação no palco do Teatro Paramount. Porém, na última hora, foi aconselhada a não se apresentar com este número. A participação de Roberto Carlos também foi cancelada, e deram como justificativa o fato de que ele tivera que marcar uma gravação urgente e importantíssima no Rio de Janeiro.
Maria Bethânia, contudo, de maneira desafiante, como sempre, cantou Querem Acabar Comigo, usando um modelito do figurinista Denner.
Três dias depois, o jornal Última Hora, de São Paulo, apontaria o “clima de guerra” nos bastidores do Frente Única. Caetano Veloso fez um discurso “baixando o pau” nos conservadores, principalmente em Geraldo Vandré, que convocou uma coletiva no Hotel Danúbio e acusou a direção da TV Record de não mais investir nos programas da MPB, preferindo apoiar os programas de Iê-Iê-iê. Paulinho Machado de Carvalho, que estava presente, afastou-o imediatamente dos quadros da emissora. A diáspora musical estava feita. Frente Única durou apenas cinco semanas. O Jovem Guarda, enquanto programa de TV, terminaria em 1969. Mais do que apenas um programa de TV ou nome de disco, a Jovem Guarda foi uma revolução no comportamento, na atitude, na estética e contribuiu para o surgimento de uma cultura pop brasileira. Nomes como Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléa, Jerry Adriani, Renato e Seus Blue Caps, Wanderley Cardoso, dentre outros - se consagraram ao cantar e tocar músicas da juventude para a juventude, estabelecendo um marco de mudanças na sociedade dos anos 1960 em diante. Os tropicalistas chegam e assumem o pedaço.
Letrista
O ano de 1965 seria um dos mais marcantes da trajetória de Torquato Neto, que desponta como letrista. Reencontra, no Rio, Caetano Veloso, que acompanhava Maria Bethânia, em substituição a Nara Leão no musical Opinião, e crava a primeira parceria da dupla: Nenhuma dor. Passa a frequentar o lendário Solar da Fossa (leiam o livro Solar da Fossa - Um Território de Liberdade, Impertinências, Ideias e Ousadias, Editora Casa da Palavra, 2011, 256 páginas, de Toninho Vaz), encontrando-se com nomes que viriam a formar a Tropicália e a tornarem-se parceiros musicais. São desse período também suas primeiras parcerias de Torquato Neto com Gilberto Gil (Louvação, Minha Senhora e Zabelê). Torquato Neto firmaria amizade com Edu Lobo, o que renderia mais três parcerias (Lua nova, Veleiro e Pra dizer adeus). Um dos grandes amigos do Solar da Fossa é Chico Buarque de Hollanda. Moraram no Solar da Fossa: Caetano Veloso, Gal Costa, Paulo Coelho, Paulo Leminski, Maria Gladys, Paulinho da Viola, Tim Maia, Betty Faria, Antônio Pitanga, Toninho Vaz, Ruy Castro etc.
Pensão Santa Terezinha
Foi no Solar da Fossa, originalmente Pensão Santa Terezinha, como era conhecido o local, que Caetano Veloso compôs Paisagem útil e Alegria, Alegria. Mas nem só artistas habitavam a Pensão de Dona Jurema, lá também moravam travestis, cabeleireiros, estudantes de Direito, futuros políticos. O local era eclético, foi precursor dos apart-hotéis, dispunha de empregadas que diariamente faziam o serviço de quarto.
Torquato Neto também circulava entre outros meios artísticos, como o Teatro Jovem, de Cléber Santos que, em diferentes épocas, disporia de atores como Wanda Lacerda, Roberto Bomfim, Renata Sorrah, Carlos Vereza ou José Wilker.
Com intelectuais engajados
Passa a ir às reuniões na casa de Vinicius de Moraes, frequentadas por intelectuais engajados como Ênio Silveira, Paulo Francis e Flávio Rangel. Entre suas amizades desse tempo estão, entre outros, Lenita Plocyuska, Tom Jobim, Paulinho da Viola, Sidney Miller, Zé Kéti, Eumir Deodato, Olívia Hime, Helena Gastal, Francis Hime, Luiz Eça, João Araújo, Dori Caymmi, Nelson Motta, Jandira Negrão de Lima, Dircinha Batista, Luiz Bonfá, Tuca, Maria Helena Toledo e Braguinha.
Não me siga que não sou novela
Waly Salomão comenta, no artigo Torquato Neto esqueceu as aspas, na Folha de São Paulo, Domingo, 8 de novembro de 1992, caderno Mais, página 7, que TN “era um amante-recolhedor das joias do pensamento de para-choque de caminhão. Não me siga que não sou novela, por exemplo, ele achava o maior barato”.
Eu prefiro todas
Para compor, buscava inspiração em hinos cívicos e religiosos, marchas carnavalescas, crônicas e até classificados de jornais: “Existem muitas maneiras de fazer música brasileira e eu prefiro todas”.
Rei Roberto Carlos
Indagado por Marcos Igreja e pela professora Waldília de Neiva Moura sobre qual a sua preferência musical, Torquato Neto respondeu na bucha: “Eu gosto muito da música americana e brasileira. Escuto geralmente Noel Rosa, Orlando Silva, Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida, João Gilberto... Por falar em João Gilberto, ele é considerado o ‘Papa’ da música brasileira. Nossa música está dividida no que ocorreu ‘antes’ e ‘depois’ dele. Considero Gil o maior compositor e cantor brasileiro. Gosto de Caetano, mas Gil possui mais recursos. Gosto muito de Gal, Elis, Bethânia, Tim Maia. Roberto Carlos é uma cara bacana. Nós aprendemos muito com ele. Ele é o ‘Rei’. Enquanto ele conseguir o ritmo e renovação será sempre o rei. Caetano disse: ‘Roberto aparece sempre com a música certa na hora certa”. (Torquato Neto, “O Poeta do Tropicalismo” afirma: Juca Chaves é o bobo da corte. In jornal A Coruja, publicação dos alunos da Faculdade de Filosofia do Piauí, Teresina, maio de 1971).
Tristeza e pessimismo
“adeus / vou pra não voltar / e onde quer que eu vá / sei que vou sozinho / tão sozinho amor / nem é bom pensar / que eu não volto mais / desse meu caminho” - Pra dizer adeus. De acordo com Paulo Bruscky, “musicalmente, sua obra pode ser dividida em fases e focos de interesses razoavelmente nítidos. Há, de um lado, o Torquato repleto de reminiscências regionalísticas; de outro, um engajado, de impermeáveis certezas; porém, há traços comuns em toda a sua obra: a tristeza e o pessimismo. O choque e ruptura interior/urbano em Torquato é o que sinaliza a sua produção tropicalista, valendo-se da proposta oswaldiana de adotar a contribuição de todos os erros - e acertos -, recriando o idioma a partir de incorporações na linguagem.”
Cada palavra é uma cilada
O músico e compositor Geraldo Brito, no comentário Palavra cantada: uma cilada, publicado no jornal O Estado, Teresina, edição de 9.11.1994, Caderno Alternativo, 1ª página, afirma que “mesmo dentro de um clima musical desenvolvido por cada parceiro, em cada canção composta, Torquato sobressai pela forma como conduz o tema. Nenhum acorde em si expressa sentimento que possa ser identificado como um som que signifique atitudes diversas. Música e letra se completam, se amalgamam. Cada palavra é uma cilada. Viva a palavra cantada!.”
Parceiros musicais
Torquato Neto faz parte, como compositor, da nata da MPB com:
Gilberto Gil (Louvação - 1965; Meu choro por você - 1965; Rancho da boa vinda - 1965; Vem, menina - 1966; A rua - 1966; Minha Senhora - 1966; Zabelê - 1966; Rancho da rosa encarnada, com Geraldo Vandré - 1966; Vento de Maio - 1966; Domingou - 1967; Marginália II - 1967; Soy Loco Por Ti, América, com José Carlos Capinan - 1967; A coisa mais linda que existe - 1968; Geleia Geral - 1968);
Caetano Veloso (Nenhuma Dor - 1965; Deus Vos Salve a Casa Santa; Mamãe, Coragem, Capitão Lampião, Juliana e Ai de mim, Copacabana - 1968);
Geraldo Vandré (e Gil - Rancho da rosa encarnada - 1966);
Galvão (Sem Essa, Aranha - 1972);
Roberto Menescal (Tudo muito azul - 1971);
Edu Lobo (Pra dizer adeus - 1965; Lua Nova- 1965, e Veleiro - 1965);
Nonato Buzar (Quase adeus e Que película);
Paulo Diniz (Um dia desses eu me caso com você - LP Canção do Exílio, CD Lança 1984);
Edvaldo Nascimento (Um dia desses eu me caso com você - CD Edvaldo Nascimento - 2009);
Jards Macalé (Let’s play that - 1972; Destino; Dente no dente - sim não);
Carlos Pinto (Todo dia é dia D, Chapada do Corisco, Três da madrugada, Pindorama palace e Quanto mais eu rezo, estas duas inéditas. E Minha amiga mais bonita é meu irmão - esta depois da morte de TN);
Silizinho (Brasa Samba - 1971);
Renato Piau (Andar,Andei);
Geraldo Brito (Go Back - 1979);
Titãs (Go Back - 1984).
Kassin (Um dia desses - 2008)
Baião de solidão
Noronha Filho dá conta da existência de Baião da Solidão, uma das últimas composições de Torquato Neto, feita em Teresina, pouco tempo antes que fosse suicidado (10 de novembro de 1972). A composição, infelizmente, continua inédita: “Em sua última vinda ao Piauí, Torquato trabalhou conosco. Fizemos um filme e ajudou-nos no suplemento na Hora: a Hora Fatal. Ouvimos música e discutimos os mais diversos assuntos. Suas últimas ligações estavam voltadas para o cinema. Fez vários filmes Super - 8 no Rio, como: Nosferato, Os Últimos Dias de Paupéria. Entre nós filmou seu último filme, que foi o Terror da Vermelha, todo rodado em Teresina e entre nós fez sua última letra: Baião de Solidão. Quando nos encontramos no Rio a última vez, mostrou-me um esboço da revista que deverá circular muito em breve: A Nave Louca. Esta será juntamente com o Gramma (um jornal nosso) seus últimos trabalhos. Seus trabalhos, tenho certeza, continuarão a ajudar as pessoas”. (Pra Dizer Adeus. Noronha Filho. In jornal O Estado, Teresina, sábado, 11 / 11 / 1972, página 2.
Chorinho com Noite Ilustrada
Paulo José Cunha, pesquisando nos arquivos da Rádio Nacional, em Brasília, encontrou o LP Papo Furado, gravadora Continental, 1970, no qual, em parceria com Isaura Garcia, Noite Ilustrada (Mário de Souza Marques Filho) gravou, de Torquato Neto e Gilberto Gil, Meu choro por você (1965). Fui lá, o disco sumiu. Tive a oportunidade de entrar em contato com Noite Ilustrada, já doente, com câncer no pulmão. Mesmo assim me atendeu e disse da honra de ter gravado uma composição de Torquato Neto, um “gênio que partiu cedo demais”. Noite Ilustrada faleceu, a 28 de julho de 2003, em Atibaia, São Paulo, aos 76 anos de idade.
Intérpretes torquateanos
Torquato Neto teve (tem) como intérpretes Ângela Maria, Ana Miranda, Adriana Calcanhoto, Caetano Veloso, Carlos Pinto, Carlos José, Cláudia Simone, Elis Regina, Edvaldo Nascimento, Elizeth Cardoso, Edu Lobo, Fagner, Fátima Lima, Fátima Castelo Branco, Fifi Bezerra, Gal Costa, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Geraldo Brito, Jards Macalé, Jair Rodrigues, Lena Rios (Barradinha), Nana Caymmi, Laurenice França, Roraima, Rubens Lima, Machado Jr., Maria Bethânia, Nelson Gonçalves, Paulo Diniz, Renato Piau, Silizinho, Silvio César, Fátima Castelo Branco, Soraya Castelo Branco, Zeca Baleiro e os Titãs... Com certa frequência, seus poemas estão sendo musicados por artistas do rock e da MPB e escritos de sua autoria (alguns inéditos) incluídos em antologias poéticas no Brasil e exterior.
Na trilha musical das novelas globais
Torquato Neto trabalhou na TV Globo, como produtor de discos de Novela. Há registro de que ele participou das trilhas musicais das novelas Irmãos coragem e Minha doce Namorada.
Irmãos coragem (Globo 29 de junho de 1970 / 15 de julho de 1971, às 20 horas, 328 capítulos de Janete Clair - 1925 / 1983 -, direção geral de Daniel Filho, auxiliado por Milton Gonçalves e Reynaldo Boury. Pela primeira vez, o público masculino é atraído por uma novela, que tratou da história dos lendários filhos da família Coragem. João, o mais velho, trabalha duro como garimpeiro até que encontra um diamante valioso. Ele é roubado pelo coronel Pedro Barros, que será o seu rival durante toda a trama, principalmente depois que ele se apaixona por Lara, a tímida filha do poderoso. Ela sofre de múltiplas personalidades e assume a identidade de Diana, uma mulher espalhafatosa e ousada, e de Márcia, um meio-termo entre as duas. Jerônimo, o irmão do meio, é o político da família e ingressa num partido de esquerda para lutar contra os desmandos do coronel. João quer fugir da paixão que sente por sua irmã de criação, a índia Potira, e então se envolve com Lídia Siqueira, filha de um importante político da região. Duda, o irmão mais novo, é um jogador de futebol dividido entre a ex-namorada, Ritinha, e Paula, que não mede esforços para ficar do lado do jogador.
No elenco estão Ana Ariel (Domingas), Ana Maria Lage (Nite), Antônio Andrade (Neca), Antônio Vitor (Sebastião Coragem), Arnaldo Weiss (Damião), Arthur Costa Filho (Gentil), Carlos Eduardo Dolabella (Delegado Falcão), Clementino Kelé, Cláudio Cavalcanti (Jerônimo Coragem), Cláudio Marzo (Duda Coragem), Dary Reis (Lázaro), Dorinha Duval (Carmen Valéria), Emiliano Queiroz (Juca Cipó), Felipe Wagner (Moreira), Fernando José (Siqueira), Francisco Milani, Gilberto Martinho (Coronel Pedro Barros), Glauce Rocha (Estela), Glória Menezes (Lara/Diana/Márcia), Hemílcio Fróes (Lourenço D’Ávila), Ivan Borges (Antônio), Ivan Cândido (Delegado Gerson Louzada), Jacyra Silva (Beatriz), José Augusto Branco (Rodrigo César), José Steimberg (Laport), Jurema Pena (Indaiá), Leda Lúcia (Margarida), Lourdinha Bittencourt (Manuela), Lúcia Alves (Potira), Macedo Neto (Padre Bento), Michel Robin (Alberto), Milton Gonçalves (Bras Canoeiro), Monah Delacy (Deolinda), Myrian Pires (Dalva), Myrian Pérsia (Paula), Neuza Amaral (Branca), Otoniel Serra (Gastão), Paulo Araújo (Hernani), Regina Duarte (Ritinha), Renato Master (Dr. Rafael Marques), Suzana Faini (Cema), Sônia Braga (Lídia), Tarcísio Meira (João Coragem), Telmo Avelar (Fausto Paiva), Vinícius Salvatore (Castro), Yara Amaral (Tula), Zeni Pereira (Virgínia), Zilka Salaberry (Sinhana), Átila Almeida (Beato), Ângela Leal (Yolanda), Ênio Santos (Dr. Maciel).
Trilha Sonora: Jerônimo (Luiz Carlos Sá), Minhas tardes de sol (A Charanga ), Irmãos Coragem (com Jair Rodrigues, de Paulinho Tapajós e Nonato Buzar), Ondas médias (Umas & Outras), Porto seguro (A Banda das Cores Mágicas), Coroado (Denise Emmer e Marcus Pitter), Nosso caminho (Maysa), Irmãos Coragem ( A Banda das Cores Mágicas), João Coragem (Tim Maia), Flamengo, Flamengo (Maria Creuza), Branca (Luiz Eça), O amor maior (Eustáquio Sena), Bachiana nº 5 (Joyce).
Paulo José Cunha revela que a composição Irmãos Coragem foi vendida por Torquato Neto para o cantor Nonato Buzar, que a dividiu com Paulinho Tapajós e pediu para Jair Rodrigues interpretá-la: “Claro que Nonato Buzar nunca vai confirmar isso, mas eu tenho essa informação. Como Torquato Neto estava precisando de grana, e nunca deu bola para esse negócio de assinar os seus textos, pegou, fez, taí, entregou de mão beijada, naquela irresponsabilidade tão característica dele. Mas eu acho que ele não fez isso muitas vezes não, deve ter sido apenas num sufoco de grana, se bem que ele sempre andava num sufoco de grana danado”.
Arnaldo Albuquerque, em depoimento ao autor, confirma a versão de Paulo José Cunha, aduzindo que Torquato Neto vendeu, também, uma composição para Sérgio Mendes, “que a gravou colocando outra pessoa como coautor. O valor foi 3 mil dólares. Esta letra disparou, foi um dos grandes sucessos de Sérgio Mendes. Nessa época, Torquato Neto, recém-chegado da Europa, estava passando por uma fase braba, financeiramente, e teve que se valer desse expediente para sobreviver”.
Minha Doce Namorada (Globo, 19 horas, 242 capítulos, de 19 de abril de 71 a 25 de janeiro de 72, de Vicente Sesso, com direção de Fernando Torres e Régis Cardoso e supervisão de Daniel Filho). Sinopse: um parque de diversões ambulante chega à cidade de Ouro Preto, Minas Gerais. Com ele, a jovem e alegre Patrícia, uma órfã que se apaixona por Renato, rico estudante de uma Faculdade local. O amor dos dois é incentivado pelo simpático Pepe, empresário tio-avô de Renato. Mas tem que enfrentar a rabugice de tia Miquita, vendedora de maçã do amor, a tutora de Patrícia. Para ajudá-la a separar os dois, conta com a interesseira Verinha, apaixonada pelo estudante. Na trama, aparece também a luta do ambicioso César Leão pela posse de uma fábrica, que influenciou todos os demais personagens. A história era ambientada em Ouro Preto, e lá foram gravadas alguns capítulos. Mas as principais cenas foram filmadas num parque de diversões à beira da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.
Daniel Filho, em seu livro Antes que me Esqueçam, revela que: “Para dirigir a novela foi chamado Fernando Torres, porque achamos que com um ator-diretor conseguiríamos melhor resultado de interpretação (...) As primeiras cenas seriam gravadas em Ouro Preto, onde filmaríamos a tradicional procissão da Semana Santa. Propus ao Fernando Torres que, quando a procissão passasse, colocássemos Regina Duarte e Cláudio Marzo no meio do povo, usando aquele espetáculo lindo na novela. Quando a procissão foi se aproximando, para variar, estava tudo pronto, menos a câmera. (...) Fernando Torres estava nervoso, e tanto empurrou Regina para o meio da procissão que ela acabou nas costas do padre que, ao perceber o que estava acontecendo, parou a procissão e deu a maior bronca. Cláudio Marzo saiu de fininho e nós viramos a câmera para o outro lado, deixando a pobre namoradinha ouvindo cobras e lagartos do padre de Ouro Preto, que, aliás, era conhecidíssimo por seus sermões inflamados...”.
Gênero água com açúcar
Gênero água com açúcar, a novela foi o maior êxito, sendo o sucesso das sete naquele início dos anos 70. Elenco: Sadi Cabral (Pepe – Hipólito Peçanha), Célia Biar (Tia Miquita), Wanda Lacerda (Sarita), Mário Lago (César Leão), Maria Cláudia (Verinha), Marcos Paulo (Raul), Susana Vieira (Nelita), Paulo Padilha, Heloísa Helena (Carmem), Paulo Gonçalves (Tibúrcio), Renata Fronzi (Anita), Urbano Lóes, Elza Gomes, Roberto Pirilio (Milton), Reynaldo Gonzaga (Wálter), Patrícia Bueno (Kátia), Ênio Carvalho (Sérgio), Íris Bruzzi (Baby), Jardel Mello, Daniel Filho, Dorinha Durval (Maura), Suzana Gonçalves (Lúcia), Rachel Martins, Juan Daniel, Carmem Silva, Norah Fontes, Carminha Brandão, Herivelto Martins Filho e Cláudio Marzo e Regina Duarte, que sairam do elenco de Irmãos Coragem antes do final da novela, para começar as gravações de Minha Doce Namorada.
A namoradinha do Brasil
Regina Duarte, aos 24 anos, ganha o título de a namoradinha do Brasil, por causa dos personagens cândidos que sempre interpretara (como Andréa de Véu de Noiva e Ritinha de Irmãos Coragem).
Trilha musical: O que houve (O Som Livre), Dez Pras Seis (Nonato Buzar), Você Abusou (Maria Creuza), Vésper (Ilka Soares), Tudo Muito Azul (com Ângela Valle, de Torquato Neto e Roberto Menescal), Minha Doce Namorada (Eduardo Conde), Instantâneo (Luiz Carlos), Minha Doce Namorada (orquestrada), Sex Appeal (Marília Pêra), Casa Branca (Jorge Nery), Garota de Aquarius (Betinho), Vésper (violão) e Tia Miquita (Marília Barbosa). Sonoplastia: Roberto Rosemberg. Coordenação Geral: João Araújo. Produção Musical: Nonato Buzar.
Tudo Muito Azul para Ana Maria
Torquato Neto recebeu “um dinheirinho razoável, em direitos autorais, por Tudo Muito Azul”, revela Paulo José Cunha, acrescentando que a letra, feita originalmente para Ana Maria, sua mulher, nasceu por volta de 1971. “Torquato Neto estava numa fase ruim, num alcoolismo danado, e a gente tentando segurar a barra. Era um momento que não podíamos dar nenhuma bobeira, que ele aproveitava para aprontar, Estávamos no apartamento da tia Dulce, na Almirante Guinle, no Rio de Janeiro. Eu vigiando-o para que não bebesse. E, para passar o tempo, pedi que ele me apresentasse um trabalho novo, e ele disse que estava fazendo uma letra naquele momento. Os versos foram nascendo espontaneamente. Ele foi ditando e eu escrevendo aquele jorro de inspiração. De repente, ele esquecia tudo e pedia para eu repetir. Ele era um irresponsável para decorar as coisas dele. Quando andava com a gente, era sempre cantarolando. Na rua, caminhando, no carro, nos ônibus, na redação do jornal, em qualquer lugar, cantarolava o tempo todo as músicas dele, dizendo que era para não esquecê-las. E, o pior, esquecia tudo, na maior facilidade”.
Sigla + Fic = Nada
A trilha de Minha Doce Namorada virou disco, e sobre ele nos fala Torquato Neto: “Sigla, pra quem ainda não está sabendo, é a gravadora que transa firme com a TV Globo. Ou, mais popular: Sigla é a gravadora da TV Globo. Estourou na praça há pouco mais de cinco meses, quando lançou o elepê da novela O Cafona: primeiro lugar em todas as paradas uma semana após o lançamento. Entrou de sola no que estava mais à mão: músicas para novelas da Globo. Minha Doce Namorada, o disco seguinte, também andou (e vai andando) muito bem; a novela não segurou bem a transa, de modo que o disco chegou apenas ao quinto lugar das paradas do IBOPE. Quer dizer: bem demais (...)”. (Sigla + Fic = Nada. In Geleia Geral, Os Últimos Dias de Paupéria, Max Limonad, 1982, página 92).
O publicitário e as lebres do Imperial
Torquato Neto trabalhou, como redator, na CIPAL - Carlos Imperial Produções Artísticas Ltda (promotora de shows, peças teatrais, filmes etc), empresa de Carlos Imperial, localizada na Rua Sá Ferreira, 44, sala 205, posto 6, em Copacabana, no Rio. Carlos Imperial tinha um programa na TV Tupi, chamado Clube do Rock, e escrevia uma coluna no jornal carioca Última Hora, onde pintavam as famosas Lebres do Imperial. Torquato Neto, de quando em vez fazia a coluna do titular para a revista Amiga e para o jornal Última Hora. “Um dia, puto, ele me disse que não aguentava mais aquela coisa. É que devia fazer sempre o perfil de uma garota, com foto de biquíni etc: ‘Porra, Lena Rios, veja se pode, eu ficar fazendo estas merdas. Tenho que descolar uma coisa mais agradável, e urgente!’ Foi o que eu fiz. Consegui, então, empregá-lo na agência do Aerton Perlingeiro, que, com a mulher Aziza, fazia o programa Almoço com as estrelas, na TV Tupi, no Rio”, revela Lena Rios, que era secretária executiva da Aquarius Produções Artísticas Ltda, de propriedade de Marcos Vale, Paulo Sérgio Vale, André Midani e Nelson Motta. A agência ficava localizada no Jardim Botânico, próximo ao prédio da TV Globo.
Torquato Neto foi também diretor de relações públicas da gravadora Philips (depois Polygram), dirigida na época pelo francês André Midani, que financiou, a pedido de Caetano Veloso, a revista Navilouca.
Desafinando o coro dos contentes
Torquato Neto sempre desafinou o coro dos contentes / incomodou os acomodados. Desde meninote fazia arte e artemanhas, se indispondo com diretores, professores, autoridades, com quem lhe atravessasse o caminho. Na inauguração da ponte sobre o Rio Poti, nem mesmo o prefeito e o padre descerraram a faixa vermelha, ele saiu correndo de braços abertos atropelando todo o cerimonial do evento. Nas águas desse mesmo rio, arremessou o relógio recém-ganho de sua mãe, em um natal, para livrar-se da obrigação de cumprir horário. Aos 13 anos, tomou o primeiro porre em uma festa junina, terminando a noite na Paissandu, zona da prostituição em Teresina. Foi proibido de entrar no Jóckey Clube de Teresina, pelo presidente, coronel Joffre do Rêgo Castello Branco, por ser um dos “cabeludos rebeldes” da cidade. Polemizou com a turma do Cinema Novo, indo contra a postura do movimento de receber dinheiro do governo e criticá-lo simultaneamente. Deu um tapa na cara do cartunista Jaguar, um dos diretores do jornal, quebrando-lhe os óculos: “Cego não precisa de óculos”, justificou. Motivo: O jornalista e cartunista Jaguar havia feito um trocadilho infame no Pasquim, do qual era diretor, chamando-o de “falsa baiana.” Puxou briga com Ataúlfo Alves, que retrucou pedindo: “não cole cartaz em mim.” Chamou Juca Chaves de “Bobo da Corte.” Desafiou Geraldo Vandré quando este se enfureceu com Caetano Veloso por este querer homenagear Roberto Carlos no lendário programa televisivo O fino da bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues, classificou a atitude de Vandré de demagógica, já que abominava a separação que então existia entre MPB e iê-iê-iê. Irritou a turma do ECAD, até hoje uma caixa preta a ser aberta, por denunciar a máfia dos direitos autorais. Era intransigente, porém justo, honesto em tudo por tudo. Louvando o que bem merecia e deixando o ruim de lado, tinha absoluta certeza do valor de cada coisa. Eis, em suas palavras, uma explicação necessária: “Eu não sou de plantar bananeira em apartamento, e quando compus Mamãe, Coragem não foi movido por nenhum sentimento edipiano. O que me preocupava era desmitificar um valor estabelecido simplesmente porque era estabelecido; no caso foi a mãe; azar, podia ter sido o mito do diploma, o anel de doutor, sei lá”.
Torquato Neto pagou um alto preço por sua postura crítica diante de situações cáusticas, como a vivenciada pelo povo brasileiro na década de 1960. Enquanto alguns se vendiam por um “lugar ao sol”, Torquato Neto dava “as costas ao lugar e ao sol” (Augusto de Campos). Não sem razão, escreveu o
Poema do Aviso Final
É preciso que haja alguma coisa
alimentando meu povo:
uma vontade
uma certeza
uma qualquer esperança
É preciso que alguma coisa atraia
a vida ou a morte:
ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a morte virá na frente
e abrirá caminho
É preciso que haja algum respeito
ao menos um esboço:
ou a dignidade humana se firmará a machadadas.
Por uma questão de ordem?
A característica que personaliza Torquato Neto no cenário da literatura brasileira pós-64 é a sua participação ativa na conturbada reformulação histórico-cultural do Brasil. O país tinha saído de um período pré-indus-trial, compreendido entre as décadas de 1940 e 1950, e encontrava-se diante do impasse: estabelecer uma nova estrutura social ou desestruturar-se socialmente. É justamente neste período que tem início a sua participação como pensador preocupado com as transformações políticas em evidência, questionando a cultura vigente com a concisa proposição: “A nós, tropicalistas, não interessa derrubar o Príncipe e deixar que sobreviva o Princípio”. O poeta, antevendo o estabelecimento da desestrutura social, conseguiu uma marca registrada para a situação que se estabelecia na década de 1960 e iria se prolongar até o final de seus dias: o Brasil, segundo ele, havia se transformado numa Geleia Geral. “(...) escrevi lá: abaixo a geleia geral. três vezes. as pessoas pensaram que era a coluna. tradução: não sabem onde é que vivem e a alienação grassa (...)”. Uma curiosidade: no dia do golpe civil militar - 1o de abril de 1964, Torquato Neto, militante estudantil, dormia na sede da UNE, na Praia do Flamengo, 132, no Rio. Foi acordado pelo amigo Nacif Elias pouco antes de o edifício ser incendiado. Ao pular o muro, para escapar, recebeu uma saraivada de balas. Uma delas penetrou sua máquina de escrever, quase matando-o.
Geleia Geral: a manhã tropical se inicia
Gilberto Vasconcelos e Glauco Mattoso, entre outros críticos, afirmam que o manifesto do movimento tropicalista é Geleia Geral, letra de Torquato Neto, musicada por Gilberto Gil, com arranjos de Rogério Duprat, lançada, estrategicamente, no dia 1º de maio de 1968.
A data tem dois sentidos: um histórico, a luta dos trabalhadores, outro estético, a deglutição oswaldiana, que estava sendo recuperada pelo Grupo Noigandres.
No dia 1º de maio de 1928, Oswald de Andrade lançara o Manifesto Antropofágico, rejeitando, como linha principal, a lógica e as ideias que representavam paralisia, declarando: “Somos concretistas”. “Pelos roteiros”. “Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas”. “A alegria é a prova dos nove”.
O título da canção Geleia Geral foi extraído de uma exclamação de Décio Pignatari, na introdução do n. 5 da revista Invenção (Na Geleia Geral brasileira alguém tem que exercer as funções de medula e osso), criada para substituir a página Invenção que, em 1961, tivera as suas atividades cessadas no corpo do jornal O Correio Paulistano. A revista, como tal, se apresentava, no 1º trimestre de 1962, como não filiada a uma tendência determinada, mas que algo unia a equipe e os colaboradores: a invenção.
Linha evolutiva da cultura brasileira
Eis a linha evolutiva da cultura brasileira: a tríade Antropofagia (Oswaldiana), Concretismo (irmãos Campos: Haroldo & Augusto e Décio Pignatari) e Tropicália, que Torquato Neto soube resgatar e fazer ir adiante, desafinando o coro dos contentes / incomodando os acomodados e imprimindo integridade à Geleia Geral, e pondo em curso a poética da resistência cultural, que tem início com Gregório de Matos Guerra e continuidade com Tomás Antônio Gonzaga, Sousândrade, Augusto dos Anjos, Oswald e Carlos Drummond de Andrade...
Hélio Oiticica - fonte inspiradora
Uma das fontes inspiradoras do movimento foi a exposição Tropicá-lia que o artista plástico Hélio Oiticica realizou em abril de 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, tendo como propósito contribuir fortemente para a objetivação de uma imagem brasileira total.
Universo tropical / urbano
Em Música Popular: de olho na fresta, Graal, 1977, Rio de Janeiro, Gilberto Vasconcelos analisa a letra da canção Geleia Geral (Torquato Neto & Gilberto Gil), dando, sobretudo, realce ao elemento textual, através da justaposição de dois termos, “os quais, à falta de algo melhor”, denominados universo tropical e universo urbano-industrial. O primeiro, segundo o crítico, possui o seguinte âmbito semântico: “exuberância da natureza, pitoresco nacional, incorporação do rústico (arcaico) e do folclore”. O segundo faz referência aos aspectos do contexto industrial, principalmente aos costumes e meios de comunicação em massa.
Decifra-me ou devoro-te
Há uma legião de poetas que pertencem ao clã dos lutadores, dos que acreditam na palavra como arma capaz de modificar e transformar realidades aparentemente irreformáveis. Leitor assíduo dos seus irmãos lutadores, sempre buscou, na elaboração de seus poemas, arquitetar uma forma de domar as palavras. E terminou, após inúmeros combates, por confessar:“Há palavras que estão no dicionário e outras que não estão e outras que eu posso inventar, inverter. Todas juntas e à minha disposição, aparentemente limpas, estão imundas e transformaram-se, tanto tempo, num amontoado de ciladas”.
Dentre as várias características que podem ser listadas, quando se faz uma análise da obra poética de Torquato Neto, ressaltam as seguintes: fragmentação do discurso, elaboração de metáforas, uso reiterado de antíteses, uso de gradações ascendentes e descendentes, humor ferino, subjetivismo, pessimismo, ilogismo pré-estabelecido, neologismo e telurismo.
A despedia dionisíaco com os amigos
Na manhã de quinta-feira, dia 9, Torquato Neto ligou às 9 horas para Lena Rios, Renato Piau e Luiz Otávio Pimentel, convidando-os para saírem em comemoração ao seu aniversário. Ana Maria estava terminando um trabalho e ficou no apartamento, só se juntando à turma na parte da tarde, quando transitaram entre os bares do Leme a Copacabana, indo do Posto 1 ao Posto 6, tomando chope, batendo papo, comendo bolinhos de bacalhau, curtindo à vontade, até às 4 horas da manhã, mais ou menos, quando retornaram para os seus apartamentos, conforme relato de Lena Rios. Menos de quatro horas depois, Ana Maria ligou para Lena Rios para comunicar que Torquato Neto havia cometido suicídio. “Foi uma das primeiras ligações que ela fez para comunicar a morte dele. Enlouqueci, bati o telefone (que não quebrou, graças a Deus), e, depois de muito lutar para ficar legal, liguei imediatamente para minha mãe e para Nonato Buzar, entre outras pessoas do nosso convívio. Foi quando chegou Carlos Imperial, que não queria que eu fosse pro IML. Eu dei um escândalo danado. Pensei em me jogar lá embaixo, pela janela do apartamento. Mas, eu me acalmei um pouco, e fomos, então, eu, mãe Helena e Nonato Buzar, de táxi. Estava um dia chuvoso, um dia triste. O Rio de Janeiro estava nublado. Um clima angustiante. Quando chegamos ao IML, no centro, pelas bandas da Gomes Freire, Frei Caneca, Lapa, por ali, Nonato Buzar me disse que o corpo de Torquato Neto já estava na Capela Santa Teresinha, ali na Praça do Mártir, perto do Corpo de Bombeiros, no centro velho do Rio de Janeiro. Quando eu cheguei lá, fiquei mais de três horas esperando, e nada. Foi quando Nonato Buzar me disse que o corpo de Torquato Neto ainda estava no IML e que não quis que eu subisse para não vê-lo todo aberto. Ele queria que eu tivesse uma lembrança de Torquato Neto vivo, bonito, maravilhoso, e não daquele jeito, com as vísceras de fora, todo cortado. Um jornal carioca noticiou que Nonato Buzar passou mal no IML e que foi levado pro Prontocor... Mas, eu não posso dizer nada, pois, na Capela Santa Teresinha, eu desmaiei. Quando acordei, já estava na casa de Carlos Imperial. De lá me levaram para um hospital ali perto. Doparam-me e fui levada de novo para a casa de Carlos Imperial. Às 8 horas do dia seguinte, me disseram que o corpo de Torquato Neto já havia sido enterrado no Cemitério São José, em Teresina. Eu não consegui ver o Torquato Neto no caixão e não pude ir ao enterro dele. Mas, depois, fiquei sabendo de tudo por intermédio dos amigos comuns. E ainda hoje guardo na lembrança, como se fosse um filme, toda a sequência da morte e do enterro dele. São imagens que não se apagam”.
Fico, não acordem o Thiago
De acordo com informações jornalísticas e de familiares, Torquato Neto ficou conversando, já no apartamento, com Ana Maria, até às 5 horas e 30 minutos, quando ela, já bastante cansada, resolveu ir dormir, sem imaginar, nem por um segundo, o que aconteceria logo a seguir.
Torquato Neto pegou um lençol, uma caneta e um caderno, entrou no banheiro, vedou, cuidadosamente, todas as saídas de ar, abriu a torneira do gás, e no seu rastro se foi.
Ao lado do corpo, foi encontrado um caderno de cor verde, espiral, do tipo colegial, onde, em três folhas, usando frases entrecortadas e letras desiguais, que iam ficando mais confusas à medida que o texto avançava, Torquato Neto deixara escrito e assinado (com assinatura irreconhecível), além de uma frase isolada - “o amor é imperdoável” -, atribuída a Caetano Veloso, o bilhete-poema enigmático:
“atesto q
FICO
Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudade como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de bananas caía.
De modo
q
FICO
sossegado por aqui mesmo enquanto dure.
Ana é uma
SANTA
de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que eu
FICO
E vou ficando por causa de este
AMOR
Pra mim, chega!
Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o THIAGO. Ele pode acordar”.
Como uma criança adormecida
De acordo com um samba antigo, “Perdão foi feito pra gente pedir”, mas o terno Torquato Neto não pedia perdão para si quando se matou, só pedia no bilhete final que não fizessem muita zoada para não acordar Thiago, seu filho único, parafraseando assim, pela última vez, o Carlos Drummond de Andrade da Canção Amiga, na leitura de Waly Salomão:
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Como uma criança adormecida, Torquato Neto foi encontrado às 7 horas e 30 minutos do dia 10, no apartamento dele, na Rua Mariz e Barros, 470/415, Bairro da Tijuca, pela babá do filho Thiago, a saudosa Gal (Maria das Graças Oliveira), que ainda chamou duas ambulâncias, uma do Hospital Sousa Aguiar e outra do Prontocor, mas já era tarde demais.
Torquato Neto foi considerado morto, oficialmente, às 9 horas da manhã, conforme atestado de óbito assinado pelo médico Hygino de Carvalho Hércules. A notícia do suicídio foi dada, por telefone, ao comissário Jaci César de Andrade, do 18º DP, que providenciou, às 11 horas, a remoção do corpo para o IML, onde foi realizado o exame toxicológico, procedimento necessário nesse caso.
Carlos Imperial, Nonato Buzar, Hermínio Bello de Carvalho e Lena Rios, entre outros amigos, foram ao IML. Ana Maria também foi com Gal (a babá), mas não desceu do carro. Ficou lá por uns minutos, depois foi embora. À tarde, por volta das 16 horas e 30 minutos, o corpo foi embalsamado pelo perito Nilton Mendonça, que no seu trabalho usou as substâncias formolina e bicloreto de mercúrio. Ele foi velado na Capela Santa Teresina até às 9 horas e 15 minutos do dia seguinte, quando foi conduzido para o Aeroporto do Galeão pelo perito criminal Vital Araújo, tio do poeta, que foi àquela cidade especialmente para trazê-lo até Teresina, a pedido do cunhado Dr. Heli Nunes, pai de Torquato Neto.
“A notícia da morte de Torquato Neto foi uma comoção na cidade. Eu fiquei impressionado com a repercussão da morte dele. As rádios e as TVs davam informes a cada minuto. As pessoas comentavam o assunto em todas as partes. Essa demonstração de amor, de respeito, de admiração pelo Torquato Neto eu encontrei em todos os lugares por onde eu passei”, conta Vital Araújo, ainda super emocionado, tanto tempo depois.
Carlos Imperial, por intermédio da CIPAL Produções, ajudou em algumas despesas, mas foi Dr. Heli Nunes quem pagou à Vasp os 1.328 cruzeiros pelo transporte do corpo.
Na escala, em Brasília, Paulo José Cunha, que fora avisado da morte de Torquato Neto pelo amigo Durvalino Couto Filho, nos corredores da UNB, onde estudava jornalismo, embarcou no primeiro voo com destino a Teresina, sem saber que o corpo do primo também estava a bordo. Ele faria a viagem ao lado do tio Vital Araújo e da viúva Ana Maria, que se encarregaram de relatar os acontecimentos.
Uma multidão aguardava o corpo em Teresina
O avião da Vasp chegou às 14 horas e 30 minutos a Teresina. Ana Maria desceu, vestida de preto, em companhia de Vital Araújo, Paulo José Cunha e de dois familiares, seguindo para o portão de desembarque, onde foi recebida por parentes, amigos e centenas de admiradores de Torquato Neto. Poucos conseguiram chegar perto do caixão de madeira escura e simples, que foi transferido para o carro da funerária tão logo o avião aterrissou na pista. Do aeroporto Santos Dummont (atualmente Petrônio Portella), seguiram, em carreata, para a casa dos pais de Torquato Neto, na Rua Coelho de Resende, 249, Sul, onde houve missa de corpo presente.
Acompanhado por uma grande multidão, formada principalmente por jovens, o corpo foi levado às 19 horas para o Cemitério São José, onde está enterrado (lado sul, próximo ao muro frontal), no mesmo espaço de sua mãe, dona Salomé Araújo Nunes. Ana Maria não compareceu à missa e nem foi ao enterro. Decidira que não o veria morto. Ficou na casa de dona Marlene Mendes, em companhia de Herondina Mendes, tia e prima de Torquato Neto.
O jornalista José Lopes dos Santos registrou logo depois, em sua coluna, no Jornal do Piauí, que “uma das cenas mais comoventes do encontro da família com o esquife foi aquela em que dona Assumpção, avó materna do jovem compositor, queria vê-lo e procuravam impedi-la, ao tempo em que diziam para não chorar. A reação veio rápida: ‘Por favor, deixem-me chorar para que eu possa viver’”.
O Rio de Janeiro matou Torquato Neto
Para dona Salomé Nunes, o Rio de Janeiro matou o filho. Por pensar assim, jurou nunca mais pisar os pés naquela cidade, mesmo morando ali o seu neto amado Thiago, filho úncio de Torquato Neto. Ela faleceu (a 10 de março de 1993) tendo cumprido a jura que fez.
Aviso quase final
Sendo impossível esgotar a fonte, ainda inexplorada, que representa a obra torquateana, que este roteiro sirva para o início de uma exploração, que começa com o esforço do leitor conjugado com o do poeta, para a compreensão da formação cultural brasileira.
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