Dr. Heli Nunes e jovens da equipe Torquato Neto.
A canção “Cajuína”, de Caetano Veloso, belíssimo baião metafísico que levanta a indagação essencial do homem neste mundo (“Existirmos. A que será que se destina?”) foi composta por causa de Tio Heli. Caetano havia chegado a Teresina para um show, estava muito triste. Retornava pela primeira vez à cidade onde havia nascido um de seus principais parceiros na Tropicália e seu grande amigo, o poeta Torquato Neto, meu primo, que havia se suicidado em 1972. Caetano procurou Tio Heli, pai de Torquato. Já se conheciam do tempo em que Tio Heli ia a Salvador ver Torquato, que estudava na mesma escola de Caetano. Levou Caetano pra casa, serviu-lhe uma cajuína, e procurou consolá-lo, pois Caetano chorava muito, convulsivamente. Em determinado instante, Tio Heli saiu da sala e foi ao jardim, onde colheu uma rosa-menina, que deu a Caetano ("pois quando tu me deste a rosa pequenina/vi que és um homem lindo..."). Ali mesmo os versos de “Cajuína” começaram a surgir, entre antigas fotos do menino Torquato, penduradas pelas paredes.
Tio Heli era dessas pessoas inesquecíveis. Alto, magro, empertigado, adorava caminhar pelas ruas da cidade. Era um caminhador dedicado. Só ultimamente, em razão da idade avançada e do crescimento da cidade, passou a andar de carro. Era avistá-lo ao longe, vindo com suas largas passadas, e logo ele abria os longos braços, preparando o abraço aconchegante, o pedido de bênção (sim, todos em Teresina, jovens e velhos tomavam-lhe a bênção). Xingava amorosamente o abraçado (“seu F...da...P..., não tem vergonha, se esqueceu de mim?”). Fazia um agrado e seguia caminho.
Espírita, amigo pessoal de Chico Xavier, Tio Heli foi um dos mais fiéis seguidores de Kardec, que centrou sua doutrina na caridade. Montou diversas creches em Teresina, salvou a vida de algumas centenas de crianças. Era de vê-lo entrando no Palácio de Karnac, sede do Governo do Piauí, para exigir do governador “leite para minhas crianças”. Não admitia histórias sobre empenhos, prazos para liberação de verbas e outras mutranhas da burocracia. Sabe-se lá como saía de lá com os mantimentos, ou com o dinheiro para adquiri-los. Promotor público aposentado, depois da morte de Torquato passou a usar integralmente o dinheiro da aposentadoria para custear as creches onde salvava as crianças desamparadas. As que chegavam sem registro ganhavam nomes de parentes ou de amigos. Uma vez me disse que havia uns três ou quatro paulos josés por lá...
Este foi o homem que nos deixou. Uma espécie de Quixote sertanejo, de gestos largos, de largos delírios, de intensas efusões de carinho. Um homem feito de afeto. Há pessoas que já chegam ao mundo eternas. Tio Heli é uma delas. Correu a notícia de que teria morrido, no que não acredito. Como acreditar que uma pessoa eterna tenha morrido? Tenho a mais absoluta certeza de que, na próxima visita à minha Teresina, ao entrar na Félix Pacheco, vou avistá-lo, com suas pernas longas e os passos largos e rápidos, a descer a rua, de braços abertos, vindo ao meu encontro. Eu me aconchegarei dentro de seu abraço, beijarei seu rosto cheiroso a loção de barba, e lhe tomarei a bênção.
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Cajuína
Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina
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Folha - Como foi o seu encontro com o pai de Torquato, que acabou resultando na canção Cajuína? Caetano - Eu estava fazendo excursão, passei por Teresina e o dr. Heli me telefonou. Quando eu o vi comecei a chorar. Ele me levou no carro, me consolando, e eu dizia, deixa eu chorar... Fomos à casa dele, ficamos só nós dois. Ele me deu uma rosa, que tirou do jardim e pegou uma cajuína na geladeira. Ficamos bebendo os dois, não falamos mais nada.
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Caetano Veloso - Eu às vezes penso muito em Torquato. No período mais próximo da morte dele, vi muito pouco Torquato. Que era uma pessoa que eu via muito. Então você sente uma angústia no sentido de que parece que poderia ou deveria ter feito alguma coisa, ter estado perto de algum modo. Mas eu ficava sem ser arrebatado por uma emoção de sentimento, de saudade ou de choro. Até que já alguns anos depois fui a Teresina. Conheci o pai dele, Dr. Hely, ficamos conversando e ele me serviu uma cajuína. Foi quando eu consegui chorar a morte de Torquato.
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Caetano Veloso - Mas, o negócio da Cajuína, que é uma música que eu gosto imensamente, foi o seguinte: o meu amigo Torquato Neto, que era meu parceiro no período da tropicália, ele morreu em 1972, nessa altura. Era um amigo muito querido. Mas, ele não estava próximo na época em que ele morreu. Eu não estava vendo ele, quase, mas passaram-se muitos anos e eu conheci o pai dele, Dr. Heli Nunes. Eu fui a Teresina algumas vezes e, depois de muito tempo passado, encontrei o pai dele e saímos juntos, eu e o pai dele, e quase que o pai dele não falava nada. Ele me levou à casa deles. A mãe dele, dona Salomé Nunes, estava hospitalizada, porque tinha feito uma operação. Ficamos conversando, eu e o pai dele. Muito poucas palavras. Ele serviu uma cajuína. Eu estava chorando muito. Eu chorava convulsivamente. E ele me consolava, o pai de Torquato Neto. Eu acho que ele é espírita. Então, eu chorava e ele me consolava. E uma hora ele me deixou com uma cajuína na sala. A quela casa, só eu e ele. E foi lá fora e voltou com uma rosa menina na mão. Do pé de rosa menina que tinha no jardim. E me entregou. Por isso, eu fiz essa música.
Clique e assista ao depoimento de Caetano Veloso e Cajuína:
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