Assis Brasil. Foto de Kenard Kruel.
à memória do professor Benedito Nunes (1929-2011)
Tenho diante dos olhos uma brochura datada de 1965. É a primeira edição de Beira rio beira vida (Edições o Cruzeiro), do romancista piauiense Assis Brasil que, no dia 18 de fevereiro de 2012, completou oitenta anos de vida. A capa traz a imagem de um porto com um círculo amarelo que me lembra o sol de Parnaíba. O tempo cronológico possibilita-me viajar em direção ao passado e especular a gênese desse romance singular na literatura brasileira. A tiragem de dez mil exemplares aponta para o sucesso de Assis Brasil que, em 1964, arrebatou com Beira rio beira vida o prêmio literário mais importante do país - o Prêmio Nacional Walmap (Waldomiro Magalhães Pinto).
Olho fixamente para a brochura de Beira rio beira vida. Súbito, ela me transporta ao universo do Nouveau Roman, movimento literário francês dos anos 1953-1970, que muitos ainda confundem com um movimento de vanguarda. Em suma, o que o Nouveau Roman propõe é a desconstrução dos elementos estruturais do romance tradicional: a trama, o personagem e o lugar do narrador. Na linha de frente do Nouveau Roman, atuaram Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Claude Simon, Michel Butor e Marguerite Duras, que se enquadram no que se pode chamar de autor-crítico e de crítico-autor. Ao escrever um romance, esses escritores punham em prática concepções individuais acerca da estética do romance. Assis Brasil, que é um autor-crítico e crítico-autor, ao escrever Beira rio beira vida, sem negar as conquistas do romance moderno, encontradas, por exemplo, em autores como James Joyce, William Faulkner e Franz Kafka, incorporou elementos estéticos peculiares ao Nouveau Roman. A leitura do romance La modificacion (Éditions de Minuit, 1957) de Michel Butor (1926), filosófico que migrou para a literatura (poesia/crítica/romance), foi determinante durante o processo de feitura de Beira rio beira vida. La modificacion é um romance desprovido de trama, escrito na segunda pessoa do plural Vous. Ação resume-se na viagem de Léon Delmon, que toma um trem em Paris e segue para Roma, onde pretende se encontrar com sua amante. Na viagem, que dura 21h, ele dialoga com passageiros, pensa na família e muda de plano. Nesse romance realista, há somente um personagem, dado que a esposa, os filhos e a amante só existem no pensamento de Léon Delmon. Em La modificacion, o autor torna o leitor participativo. Deliberadamente, Michel Butor faz com que o leitor assuma o lugar do autor no ato da leitura.
Essa brochura amarelada pela pátina do tempo suscita-me uma pergunta inevitável: há uma trama em Beira rio beira vida? Observo o narrador e os dois personagens-narradores, Luíza e Mundoca, eles mantêm um diálogo permanente (só interrompido pelo narrador) e me põem diante de uma ação que afasta para longe a possibilidade de uma trama (na acepção tradicional do termo). Luíza e Mundoca recuam no tempo, deparam-se com o passado marcado pela prostituição e pela marginalização. Na palavra dos narradores não se percebe onisciência. À sua maneira, cada um dos três narradores conta parte da ação (é ponto de vista na narração). No que tange ao tempo, penso estar diante de um romance anacrônico; pois não há início, apenas o começo da ação, que se desenvolve num ponto avançado da narrativa. O romance não termina, retorna ao começo da ação (a narrativa é circular). Em Beira rio beira vida, contrastam duas modalidades de tempo: o tempo cósmico, perceptível no movimento exterior da natureza (o subir e o baixar das águas do Parnaíba) e o tempo psicológico, configurado na experiência da sucessão dos estados internos dos personagens-narradores Luíza e Mundoca. O tempo cósmico é prospectivo e irreversível, não permite movimento de recuo em direção ao passado. Por sua vez, o tempo psicológico é sempre reversível, permite recuos em direção ao passado ou avanços em direção ao futuro. Em Beira rio beira vida, há uma unidade de lugar. O cenário ou o teatro do mundo é a cidade de Parnaíba dos anos quarenta, que os narradores, como se fossem demiurgos, reconstroem na memória. Como em La modificacion, Beira rio beira vida dispõe de poucos personagens, basicamente dois: Luíza e Mundoca. Os personagens Cremilda, Jessé, Nuno e Darcy Mavinier, por exemplo, só existem na memória de Luíza e de Mundoca. O personagem Darcy Mavinier, que fora levado do mundo real para ficção, insere Beira rio beira vida no Roman à Clef. Ao escolher o tema da rejeição social, ao romper com a onisciência e a centralidade do narrador, ao optar pela ação em prejuízo da trama, ao abolir o traço psicológico dos personagens, ao assumir o tempo anacrônico e a unidade do lugar, Assis Brasil renuncia aos cânones do romance tradicional e assume um lugar de destaque no realismo da contemporaneidade, que muitos pensadores preferem chamar de Pós-Modernidade.
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