“A importância de Torquato Neto vai aparecer naquilo que ele fez e disse” (Toninho Vaz).
Certamente, foi isso que ocorreu. O poeta, letrista, jornalista, ator e cineasta piauiense Torquato Neto se despediu da vida há exatos 39 anos. ‘O sujeito dispersivo’, como o denominou o compositor Edu Lobo, é ainda hoje um dos grandes nomes da cultura piauiense que se projetou em todo o Brasil. Com um vasto conjunto de obras e amizades, Torquato Neto foi um dos fundadores do movimento Tropicália. Amigo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Nara Leão e outros grandes nomes da cultura brasileira, Torquato se destacou pela irreverência e rebeldia. “A vida breve, mas fecunda, de Torquato Neto é uma síntese da grandeza, mas também dos abismos que definem a cultura alternativa e rebelde dos anos 60 e 70”, diz o escritor José Castello. A sua rebeldia figurava também em sua aparência. Seus cabelos compridos e roupas ao estilo hippie o configurava como um homem que recusava o mundo que vivia. “Ele tinha a vontade de destruir o mundo para, nesse mesmo gesto, fazer o parto de um novo”, acrescenta José Castello. Longe dessas definições e interpretações de Torquato, seu primo e admirador, George Mendes, tinha apenas 14 anos quando Torquato se suicidou.‘Eu era o menininho que olhava seu ídolo e que tinha a chance de chegar perto dele’, diz George com satisfação. Sem ousar definir Torquato ou mesmo imaginar o que o poeta era e pensava, como fizeram os autores citados, George nos conta um pouco as suas impressões de Torquato Neto:
Torquato morreu com 28 anos. Em uma passagem tão rápida pela vida, que contribuições ele conseguiu deixar para a cultura piauiense e brasileira? Bom, eu costumo dizer que o Torquato é um artista multimídia. Provavelmente, um dos maiores artistas multimídia do Brasil e o primeiro do Piauí. Torquato trabalhou em música, no cinema, literatura e exerceu o jornalismo cultural durante muito tempo. Ele é uma artista de várias linguagens, que são sintetizadas na poesia. A sua essência era a poesia. E como poeta foi compositor, ele compôs letras de música, ele morreu sem deixar um livro publicado de poesia, propriamente dita, mas tem dois livros a serem publicados. Atuou como cineasta, ator, roteirista e artista plástico. Uma coisa que é instigante no Torquato é a gente lembrar que ele morreu tão jovem e construiu uma obra tão instigante, tão vasta e ao mesmo tempo tão quantitativamente pequena. Em dez anos, ele foi capaz de construir uma bora tão inovadora, de tal forma que ela conseguiu se eternizar no tempo. Para você ter uma ideia, as obras de Torquato foram construídas em uma trajetória que começa em Teresina, vai a Salvador, Rio de janeiro, São Paulo, Londres, Paris e Rio, onde ele terminou falecendo.
Como era o Torquato artista? Ele era um artista singular, ele não apenas dizia o que ele achava que devia ser feito, ele fazia. Então foi um homem que deu o seu testemunho da concepção artística, do seu fazer artístico, assinando a vida com a própria morte. Se existe uma coisa permanente na obra dele, era essa dualidade entre morte e vida. O Torquato dizia que a morte era o começo de tudo. Ele era filho de um espírita, o pai e de uma católica, a mãe. Ele não escolheu nenhum dos dois, juntou as duas coisas em tudo. Para ele, viver era morrer e morrer era viver, e ele fez isso de uma forma que espantou a todos. Se a gente for pensar nos padrões normais, como passa na televisão, Torquato era tão jovem, tão brilhante e morreu tão cedo e ao mesmo tempo podia ter tido uma carreira brilhante. Se pensarmos o que ele seria hoje, fico imaginando: será que a carreira dele o levaria para uma fama que ele nunca quis, o estrelato que ele nunca quis? Se continuando a vida, ele passaria a cantar? Eu digo que não, porque ele era desafinado. Ele não tocava um instrumento, mas tinha um ouvido extremamente musical. O Gil diz em uma entrevista que fazer música com Torquato era muito fácil, pois ele trazia a música muito pronta, a maneira que ele escrevia já construía a música. Ele sabia a palavra escrita, falada, e sabia o tempo das coisas. É um cara que se tornou importante para a cultura brasileira. Esse negócio de dizer que o Torquato é piauiense, é nosso, isso é uma circunstância de vida. Mas o Torquato se tornou importante para a cultura brasileira, por conta dele, da vida dele, sem medir consequências convencionais. Com isso ele conseguiu se tornar um ícone da contracultura, da tropicália, com disposição de sempre contrariar as coisas. Então, ele nunca foi bonzinho. Ele tinha um jeito meigo e quieto, mas o Torquato era um vulcão criativo, ele nunca quis cultivar o estabelecido, nunca quis louvar aquilo que está na vida de todo mundo. Se você pegar os primeiros poemas de Torquato, você se espanta com a facilidade que ele tinha com as palavras, ele escrevia sobre tudo, escrevia compulsivamente e com uma qualidade impressionante sobre o que vinha na cabeça.
Tendo em vista esse jeito rebelde, O Torquato era aceito nas décadas de 60 e 70 pelas sociedades piauiense e brasileira? Tu acha? (risos). É nada. O Torquato era filho de duas pessoas de uma religiosidade muito forte, de um promotor público e servidora estadual, um filho de classe média. Um menino, filho único. Que até na hora de nascer, ele deu trabalho, foi traumático, parece que não queria nascer, mas nasceu, puxado, ‘a ferros’ como ele próprio escreveu. E tinha uma ânsia de ganhar o mundo. O Torquato queria ser a novidade, queria andar na vanguarda das coisas. Então como é que esse cara podia ser aceito pacificamente em uma sociedade tradicionalista como a piauiense e teresinense? Torquato era o cara que, estando em Teresina, ele era família, quietinho, mas ao mesmo tempo ele era periferia, ele era submundo, era artista, ele estava mexendo onde ninguém imaginava que ele pudesse querer estar. Seguramente, se ele estivesse vivo e tivesse hoje a idade que ele teve em Teresina, ele tava era para as bandas do Dirceu, correndo no rumo do Promorar, passeando pela zona norte, e não estaria em nada tradicional.
Como Torquato participou do Movimento Tropicália? Qual sua contribuição? Essa história é mais conhecida. Ele foi fazer o chamado cientifico na Bahia e lá encontrou um grupo de amigos, Caetano, Bethania, Gil, Gal. Ele encontrou nessas pessoas a identidade cultural brasileira. Nesse tempo o interesse do Torquato não era a música popular, era o cinema. Ele era assistente de produção do Glauber Rocha, na Bahia. O movimento cultural baiano era de uma efervescência impressionante. Ele se envolveu com essas pessoas, mas ele não queria ficar em Salvador, era pouco, e se mandou para o Rio. Lá ele reencontra esses amigos. Por não cantar, Torquato e outros artistas pensaram o movimento e Gil e Caetano fizeram o movimento. Ao mesmo tempo, ele reagiu na vida brasileira, ele reagiu dizendo ‘tá no fim’,‘acabou’. O tropicalismo queria destruir todos os princípios que fossem matriz da arte brasileira. Eles não queriam fazer elegia de nada, queriam era acabar com essa divisão entre bom gosto e mau gosto, entre cafona e moderninho, o brega e chique. Eram valores que ele não cultivava. Vale ressaltar que Torquato sempre foi um intelectual muito bem informado, ele com quinze anos já tinha lido Skakespeare completo, tinha admiração pelo Carlos Drummond Andrade, conhecia os maiores poetas do mundo, tinha interesse artístico muito ampliado. O espaço que ele tinha para ocupar, se ele não cantava e nem tocava, o que ele podia fazer? Ele partiu para o cargo que lhe coube para esse movimento, era pensar, escrever.
Torquato sofria de alcoolismo e alguns dizem que era melancólico e depressivo. Essas situações o teriam levado a cometer suicídio? Ele sofria de alcoolismo, mas não sabia se ele era depressivo ou melancólico. Bom, ninguém é capaz de imaginar o que se passava de fato pela cabeça dele. O certo é que, pegue todos os textos do Torquato, e veja a dualidade vida e morte e morte e vida. É uma coisa constante , é o conflito básico de tudo. Eu acredito que o inconformismo dele pode até ter levado ao fato dele pensar que fez tudo o que podia fazer, que se sentia no fim da linha.
Você conviveu com ele? Não, não. Quando Torquato morreu eu tinha 14 anos. Eu era o menininho que olhava para o seu ídolo, que conseguiu chegar perto dele. Sem entender muito direito as coisas. Depois eu puder refazer esses caminhos, lendo, estudando, ouvindo. A relação com o Torquato era um adulto com um menino. O Paulo José Cunha, também nosso primo, teve um convivência mais igual com ele. Agora comigo não, a relação era absolutamente familiar e de um adulto com uma criança, de um adulto com seu ídolo. Conheci depois mesmo que ele morreu. Eu tive interesse, curiosidade depois mesmo. Acabei sendo padrinho do único filho dele, o Tiago. Hoje ele é piloto de avião da Azul, é casado com uma americana e mora no Rio, tem um filho também. Ele vem de vez em quando aqui. O pai de Torquato morreu esse ano, aqui em Teresina. Mas eu o conheci mesmo depois que passei a estuda-lo, a me interessar por ele.
Você acha que o Torquato é reconhecido, pela sua grandeza, tanto no Brasil como aqui no Piauí? Ele se tornou um mito, que tem a referência no Piauí. O que acontece é que o povo conhece Torquato, mas ninguém sabe explicar nada, não o conhece profundamente, nem sua obra. Isso se deve também porque ele não foi propriamente um sucesso. Ele foi um sucesso de critica, de publico não. Torquato é um grande nome da cultura nacional, mas é o grande nome da cultura marginal. Mesmo assim,ele se firmou como um grande nome da cultura brasileira, foi parceiro de grande nomes, ele circulou em lugares e por pessoas que nenhum piauiense circulou até hoje, só o Mario Faustino. Mas o Mario era o homem da escrita, da poesia. O Torquato era uma artista da palavra falada, da palavra escrita, da filmada. Ele era muito completo.
Como primo e estudioso de Torquato, consegue imaginar o que ele quis dizer no bilhete que deixou antes de cometer suicídio? ("Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar" [Torquato Neto])
Quem é que sabe interpretar corretamente as últimas palavras de um suicida? O bilhete tem uma dramaticidade, um conteúdo muito forte, que pode nos levar a diversos pensamentos. Pra mim pode dizer uma coisa, pra outro quer dizer outra coisa. Eu sei que é uma coragem imensa você deixar uma mulher de 28 anos e um filho de três anos, achando que estava no fim, que não precisava de mais nada, que já tinha evoluído tudo que podia. Torquato não é fácil de ser lido, fico sem graça de ver alguém tentando interpretá-lo, ele serve de tantas interpretações, é uma temeridade alguém dizer que ele era isso, aquilo. Então, ninguém vai conseguir explicar isso, ninguém.
Fonte: Portal AZ.
Nenhum comentário:
Postar um comentário