Zuenir Ventura.
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Em um lugar afastado da cidade, uma porção de jovens vara a noite ao som de música alta. A celebração hedonista tem como combustível as drogas. Em 1969, era Woodstock, o ácido lisérgico e o rock. Em 2009, são as raves, com o ecstasy e as batidas eletrônicas - até a lama, famosa no festival americano, dá o ar da graça. A associação é feita pelo jornalista mineiro Zuenir Ventura no livro 1968 - O que fizemos de nós, lançado no ano passado. Na pesquisa, buscava ecos do ano das revoluções nos dias de hoje e decidiu experienciar uma rave. Lá, percebeu que o espírito de liberdade que perpassou o festival americano continua vivo, ainda que sem o engajamento político de antigamente. Zuenir esteve em Fortaleza, na última quarta-feira, para participar do debate Ideais: Jornalismo Literário, promovido pelo Centro Cultural Banco do Brasil Itinerante. Ainda no hotel, recebeu O POVO e, tomando uma água com gás, conversou sobre Woodstock e raves e apontou a tecnologia como a grande revolução da juventude do século XXI. (Alinne Rodrigues).O POVO - 1969 foi o ano em que o homem foi à Lua, o ano de Stonewall e o movimento gay, o ano de Woodstock. 1969 é também um ano que não terminou? Zuenir Ventura - 69 é, não só aqui, como no mundo, uma continuação de 68. No Brasil, por exemplo, 68 não terminou, porque houve aquele AI-5, que foi um golpe, e o pior de 68 é que passa para 69: a repressão mais dura, governo Médici, a época em que a ditadura foi mais pesada. Mas, no mundo, houve uma continuação, sobretudo nos EUA, do que 68 tinha de melhor, que foi exatamente o sonho juvenil, o “paz e amor”, e Woodstock simbolizou tudo aquilo, resumiu a história. Os meninos lá no meio da lama, sonhando, aquela utopia, a liberdade, o congraçamento. Então é essa a diferença: acho que, no Brasil, 69 herdou o que 68 tinha de pior, mas, no mundo, herdou o que havia de melhor.
OP - Como a contracultura e as notícias de Woodstock chegavam no Brasil? Zuenir - A contracultura chegou, sobretudo, através de um veículo muito importante na época, o Pasquim. E tinha, no Pasquim, um colunista, que ainda está aí, o Luiz Carlos Maciel, que é um grande jornalista. Ele era uma espécie de porta-voz, um intérprete, meio que um teórico da contracultura. Ele trouxe todo aquele legado de Woodstock, do movimento underground, que, aqui, a gente chamava de ‘udigrúdi’.
OP - Como a contracultura e as notícias de Woodstock chegavam no Brasil? Zuenir - A contracultura chegou, sobretudo, através de um veículo muito importante na época, o Pasquim. E tinha, no Pasquim, um colunista, que ainda está aí, o Luiz Carlos Maciel, que é um grande jornalista. Ele era uma espécie de porta-voz, um intérprete, meio que um teórico da contracultura. Ele trouxe todo aquele legado de Woodstock, do movimento underground, que, aqui, a gente chamava de ‘udigrúdi’.
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OP - De que forma o festival reverberou aqui? Chegou a haver algum tipo de Woodstock brasileiro? Zuenir - Não, não chegou a haver um Woodstock brasileiro. Acho que foi haver muitos anos depois, que foram as raves, que guardam o espírito de Woodstock. Naquela época, não houve um evento como Woodstock, mas houve o espírito, que realmente perpassava a geração. O movimento hippie tinha manifestações aqui, tinha representantes. Hair foi um filme e uma peça que fizeram muito sucesso em todo o mundo, inclusive aqui no Brasil, então tinha um espírito meio disperso na juventude que se resumia no movimento hippie, que foi realmente o principal canal da contracultura e da cultura do paz e amor.
OP - Esse espírito, de certa forma, tinha sido antecipado pelo tropicalismo no Brasil? Zuenir - O tropicalismo é de 67 e você tem razão, há pontos de contato entre esses dois movimentos. O tropicalismo foi um movimento de rebeldia e de liberação das artes: das artes plásticas, do teatro, cinema e, sobretudo, da música. Então, nesse sentido, ele mantinha uma afinidade muito grande e acabou sendo precursor daquele espírito. Não do Woodstock, daquele encontro, daquela fazenda, aquilo foi uma coisa que só aconteceu uma vez. Mas deixou esse espírito. O tropicalismo é anterior a Woodstock, mas, de certa maneira, comunga daquele espírito. Sem preconceito, liberdade de expressão, manifestação.
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OP - Em 1968 - O que fizemos de nós, você conta sua experiência em uma rave e chama a festa de Woodstock do século XXI. Que aspectos aproximam os dois eventos? Zuenir - Como todo jornalista, eu sou muito curioso. Eu estava fazendo o livro e eu ia estudar o legado, o que tinha ficado de 68 para hoje, 40 anos depois. E fiquei entrevistando muitos jovens, garotos, adolescentes no Rio. E se falava muito em rave. Eu não conhecia, sabia tudo mal. Você lia uma matéria sobre rave e parecia uma coisa do diabo, elas foram satanizadas durante muito tempo. E fui lá para ver. Fui com uma amiga jovem, bem dessa turma, e a ida deu origem ao capítulo A primeira rave a gente não esquece, porque realmente foi um choque cultural muito grande. Desmenti uma porção de estereótipos e de preconceitos que eu tinha: de que era um antro de violência, um antro de drogas, que acontecia de tudo, uma orgia. E eu me surpreendi vendo uma festa até muito bem comportada, em que as pessoas estavam querendo se divertir, dançar, pular. Claro que tinha droga, mas hoje qual é a festa, pelo menos no Rio e em cidades grandes, que não rola negócio de droga?
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OP - Onde estão as diferenças entre o jovem da rave e o de Woodstock? Zuenir - Talvez a grande diferença seja que você tinha uma geração politizada, uma geração que, de certa maneira, tudo passava pela política, até o sexo. Tanto que você não fazia (sexo) com um adversário político (risos). O País era outro, o mundo era outro, e hoje você tem uma geração que não quer saber nada da política. Agora, há razões para isso: uma delas é que a política piorou muito, do ponto de vista de representação. Você olha Brasília, por exemplo, e esses escândalos todos, essa coisa do Senado. Como é que você chega para o jovem hoje e pergunta se ele quer ser senador? Ele vai achar que você está ofendendo ele, ou brincando ou ofendendo. Por outro lado, a sociedade ficou muito mais egocentrada, as pessoas estão muito mais voltadas para si mesmas. Essa é a principal diferença: você tinha uma época que tinha uma coisa muito coletiva e voltada para o outro, movimentos sociais, movimento de solidariedade, contra a guerra do Vietnã, havia sempre passeatas, comícios, e hoje você tem realmente uma geração que não quer saber de política. Eu acho uma pena isso, porque você não vive sem fazer política. A história do Brasil é toda marcada pela participação dos jovens, dos estudantes. Os grandes acontecimentos do Brasil sempre foram movidos pelos jovens. Hoje você tem uma queda do nível ético escandalosa, e o jovem poderia e deveria fazer disso uma causa para ir à luta, mas ele está muito voltado pra si mesmo. É fácil notar isso na ligação que eles têm com o computador, ficam dia e noite. Não é que não estejam se comunicando, mas é sempre uma comunicação através da tecnologia. Nunca é o cara a cara, corpo a corpo.
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OP - E hoje esse poder jovem já não existe? Zuenir - Não existe, pelo menos não tem se manifestado.
OP - Os jovens de Woodstock viviam sob o lema “sexo, drogas e rock n’ roll”. Como ele se desdobrou nesses 40 anos? Zuenir - 68 deixou algumas heranças positivas importantes e quase todas elas foram no plano do comportamento. Houve realmente uma revolução sexual. Hoje a mulher tem uma liberdade em relação a seu corpo que não tinha antes e mesmo em relação ao mercado de trabalho. Em geral, se não a maioria, tem uma grande presença feminina. A condição feminina realmente avançou. Muita coisa a conquistar, mas houve muita conquista. No plano sexual, da chamada revolução sexual, o que atrapalhou foi aquilo que chamo de contrarrevolução, que é a Aids. O surgimento da Aids acabou com aquela brincadeira da liberdade. Em 68, você consegue romper com aqueles tabus de preconceito, virgindade, adultério, pecado. A mulher passou a dominar o seu corpo mesmo em relação ao aborto, por exemplo, e isso foi uma conquista. Outra conquista daquela época é o movimento gay, que é um movimento fortíssimo, que começa em 68, mas, sobretudo, em 69, que é o marco. Mas, você vê o seguinte: se há no Brasil um movimento que bota dois, três milhões de pessoas na rua é o movimento gay. Acho que nenhum outro consegue fazer isso. O movimento negro, a consciência negra também começa naquela época. Acho que a eleição do Barack Obama é um desdobramento de 68. Sem o movimento negro, você não teria o Barack Obama, do mesmo jeito que não teria Hillary Clinton concorrendo. E outro é o movimento ecológico, de defesa do meio ambiente. Hoje é uma consciência planetária, e o Brasil teve uma importância muito grande. Quem escreveu essa questão foi Chico Mendes, com a defesa da Amazônia. Agora tem uma herança maldita nessa história toda que eu acho que são as drogas. Tinha-se em relação às drogas uma visão utópica e romântica, que as drogas eram um instrumento de libertação da consciência, do conhecimento, e hoje as drogas estão entregues às multinacionais do narcotráfico e são um instrumento de morte.
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OP - Em 1979, 1994 e 1999, houve tentativas de resgatar Woodstock que não deram certo. O que tinha de tão especial aquela geração que não existiu em outros momentos? Zuenir - Essas coisas são muito curiosas. Quem me deu uma resposta muito boa para essa questão foi Caetano Veloso. Eu perguntei ao Caetano para esse livro, 1968 - O que fizemos de nós, se ele achava que poderia ter um outro 1968. E ele dá essa resposta que, para mim, é fantástica: para ser igual, tem que ser muito diferente. Senão vira imitação, vira pastiche, uma cópia fake, não dá. De certa maneira, a rave é uma versão de Woodstock porque tem uma coisa parecida, mas é muito diferente, então por isso que é parecido. É preciso cuidado para os garotos hoje não quererem imitar 68. As formas de luta têm de ser diferentes. Querer repetir hoje vira farsa, caricatura.
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OP - Existiu uma geração Woodstock. Hoje é possível dizer que existe uma só geração atuando? Zuenir - Quando fui fazer esse livro, fui com uma série de estereótipos: que essa juventude não quer nada, que esses meninos só querem saber de... Aí comecei a lembrar que eu estava usando os mesmos argumentos que a geração anterior usava com relação à geração de 68. Esses meninos só querem saber de passeata, não querem saber de nada... Era a crítica que as pessoas mais velhas faziam. E, de certa maneira, eu estava fazendo. Aí comecei a descobrir coisas muito interessantes nesses jovens de hoje. Claro que é uma geração que não quer nada, mas me dei conta do seguinte: se hoje tem uma revolução, é uma revolução tecnológica, e ela está sendo feita toda por jovens, de 18, 19, 20 anos, todos ricos com isso. Eu estava vendo uma matéria outro dia com o menino que inventou esse outro site de relacionamento, o Facebook. Esse menino tem 25 anos e, vê só que história, dois anos atrás, três anos atrás, o YouTube ofereceu 1 bilhão de dólares. Gente! Você imagina o que é isso? Tudo isso aí, não conheço bem, não é meu quintal, mas sei que YouTube, Orkut, Google, é tudo feito por jovem, então não é assim. Em relação a tecnologia, por exemplo, eles estão avançadíssimos. Em área de política, realmente, eles não querem saber. Então tem que olhar com um certo cuidado, para não botar no mesmo bloco e dizer que não querem nada e ficar querendo saber o que vai ser do mundo com esses jovens, porque não é bem assim. A gente precisa olhar sem preconceito e dialogar com eles. A gente tem muito que dar e muito o que receber também. Então o que eu proponho é realmente um diálogo, que a minha geração dialogue com essa nova geração e não vire as costas dizendo que eles não querem nada. Isso era o que se fazia em 1968, e depois se deram conta de que, poxa, era uma geração que estava realmente tendo uma atuação. Então, a gente tem que prestar atenção porque o futuro é deles, bem ou mal é deles. A minha geração já deu o que tinha que dar.
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